Páscoa do Senhor: Páscoa do Cristão

“Non est hic: surrexit enim, sicut dixit – Ele não está aqui! Ressuscitou como dissera(Mt 28, 6).

Oh venturosa noite! Oh dia dos dias! O Senhor vitorioso está vivo. Não morre mais, mas vive eternamente. Pois vitorioso como o Senhor devem estar nossos corações, os corações de todos os cristãos. Travadas lutas e mais lutas, hoje glorificamos ao Senhor pelo Seu feito maravilhoso: A morte não pôde detê-Lo. Tenho dito que, se O amamos, fizéssemos aquilo que pediu Paulo: crucifiquemo-nos com Ele. Agora, para os que com Ele foram crucificados, há uma nova vida, firmada em Seu Sangue e brilhante como a Sua luz.

Quem ama deve madrugar e só assim acharão aquele por que procuram: “Qui mane vigilant ad me, inveniet me – Os que por mim madrugam me acharão” (Pr 8, 17). Foram, pois, as três Marias a túmulo de madrugada e porque muito amavam madrugaram, para limpar o corpo do Senhor e perfumá-lo, dado que no dia anterior não houvera tempo para fazê-lo. Mas ao chegarem não acharam o que buscavam. “Assim não cumpre Deus sua palavra, não porque falta, mas porque excede o que promete. Não acham o que buscavam, mas acharam o que nem a buscar, nem a desejar, nem a imaginar se atreviam” (Pe. Antonio Vieira, Sermão da Madrugada da Ressurreição).

Madrugada era esta que mais estava a terra coberta pelas trevas que pela luz. Meu Senhor, por que nas trevas quereis, Vós, ressurgir? Mas como pode a luz brilhar de dia? Somente no escuro brilhará ela fulgurante. A Luz das luzes, porém, quer brilhe de dia, quer brilhe a noite, sempre mantém seu fulgor, e sempre se destaca, mais que a luz do sol, pois não haveria de ter sol se não fosse por obra de Deus, o Sol por excelência. Como pode o brilho da criatura exceder o do Criador? Não há como. O próprio Senhor dissera: “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8, 12). Sim! Nós cremos que És Luz, Senhor glorioso. E mais que ver-Te brilhante, queremos brilhar ao teu lado. Não um brilho de efemeridades e prazeres, como brilha o mundo; mas o brilho daqueles que, em Vós, por Vós e Convosco foram ressuscitados.

Profundos são os dias que a Igreja convida-nos a celebrar. E tão profundos são que não haveria eu de contentar-me em celebrá-los se não fizessem com que os meus dias, outrora pecadores, sejam revistos no presente e modifiquem-me para o futuro com Deus. Pois há em tais dias profundas relações nas celebrações, e não é diferente na relação do Natal do Senhor e da Páscoa. Nestes dias nasce o Senhor, e por duas vezes nasce! A primeira nasce para o mundo, uma vez que nasce à vida mortal, por meio do seio virginal de Maria; e neste outro nasce à vida imortal, saindo do seio da terra, do sepulcro.

À Páscoa antecede-se à Quaresma. Com jejuns e orações clamamos a Deus o arrependimento dos nossos pecados. Agora, chegado o tempo da glória, e pondo de lado os jejuns, somos impelidos a cantarmos um hino de glória. Aleluia! Cantamos nós, das mais profundas entranhas. Louvai ao Senhor, dizemos ao próximo e a nós mesmos. Louvai-O todos os povos! E isto é mais que justo, pois haveremos de louvá-Lo pelo que é e pelo que realiza. Mas, ainda mais importante é não apenas dizermos que louvamos, e sim demonstrá-lo a todos os povos. Louvai-O pelo canto; louvai-O com a voz e a língua, mas, sobretudo, louvai-O com o coração; louvai-O com o exemplo; louvai-O com a fé; louvai-O com o amor; louvai-O nas desgraças; louvai-O nas alegrias, e assim havereis de cumprir o que Paulo exorta: “In omnibus gratias agite – Em tudo daí graças” (1 Tes 5, 18). Ainda nos dirá o excelso Santo Agostinho, predicador do Evangelho com a própria vida: “Louvamos a Deus agora que nos encontramos reunidos na Igreja. Mas logo ao voltarmos para casa, parece que deixamos de louvar a Deus. Não deixeis de viver santamente e louvarás sempre a Deus. Deixas de louvá-lo quanto te afastas da justiça e do que lhe agrada. Mas, se nunca te desviares do bom caminho, ainda que tua língua se cole, tua vida clamará; e o ouvido de Deus estará perto do teu coração. Porque assim como nossos ouvidos escutam nossas palavras, assim os ouvidos de Deus escutam nossos pensamentos” (Sermão da Páscoa).

Oh! Rejubilai-vos em Deus! Não agora poderemos plenamente rejubilar, senão quando face a face estivermos com Ele. Mas para quem ressuscita? Digo-vos, caríssimos, que não é ressuscitado só para Si ou para vós e sim para todos. Mas estejam atentos! Não fecheis o coração a Cristo! Ele quer salvar-vos. Deixai-vos alcançar pela ressurreição! Grandes coisas, vos afirmo, há de fazer o Senhor por nós, mas nada pode comparar-se ao que já fizera.

No início da solene celebração do Sábado Santo acontece a benção do fogo. O Sacerdote acende o Círio Pascal e canta: Lumen Christi – Luz de Cristo. Sim, verdadeira luz! Luz que as trevas não podem ofuscar. A Igreja, feliz em anunciá-lo ao mundo não se contenta em cantar uma vez, pois canta três vezes.

Seja-me permitido agora voltar ao tema dos que, por amor, madrugam. “Assim o fez nesta manhã o divino Amante Cristo, continuando os desvelos do seu amor; e assim o devemos nós fazer todos os dias, para não faltar às correspondências do nosso tempo” (Padre Antonio Vieira, Sermão da Ressurreição). Que grande madrugador é o amor! Como vemos, ele não deixa-se embalar pelos pesados olhos que faz transparecer o sono; sem mesmo diria que pode o amor bocejar. “Inquietas res est amor: parcem diligis, si multum quiesces – O amor é um espírito sempre inquieto, e quem aquieta muito, sinal é que pouco ama”, nos há dito o filósofo Platão. Jamais dorme o amor! Platão deveria saber o que era o amor, mas Cristo o soubera mais; e o soubera não apenas porque nunca tivesse o Seu amor dormido, mas porque Ele mesmo é o Amor. Durmam os sentidos e ainda teremos amor; durma o amor e já não servir-nos-ão nem os sentidos e nem nada mais, pois quem não ama torna-se vazio e nada do que faça haverá de preenche-lo. Perdeu-se há muito tempo o verdadeiro sentido do amor. Todos amam e a tudo amam. Criam essenciais supérfluos em suas vidas e esquecem que o único essencial é Deus.

Por ser o próprio Amor, madruga o Senhor antes mesmo que o sol desponte os seus primeiros raios, deveras que quando despontar o sol já será dia, e vem o Senhor para dissipar as trevas. Pois uma vez que estava ainda escuro que não chamam os evangelistas de sombra, senão que de trevas, como poderá afirmar alguns que o sol já havia despontado na ressurreição? Ora e quem é o verdadeiro sol que alumia a tudo com seu brilho? Não é o Cristo esta venturosa luz que curvamos para adorar? Como bem afirmara o salmista: “Desperta minha glória… quero acordar a aurora” (Sl 56, 9). Dirão os poetas que a aurora é quem desperta o sol, Davi no-lo dirá o contrário. Pois que a aurora nos acorde é prodígio da natureza, mas que se desperte a aurora não seria prodígio, e sim milagre. E quem poderia despertar a aurora? Excitabo auroram! O mesmo que desperta sua glória; que dá vida à humanidade e dá verdadeiro sentido à vida. Primeiro há de surgir a glória e assim poderá, Ele, despertar a aurora, pois será esta submetida a seu excelso poder.

Que dia preparou-nos o Senhor! Oh dia! Não qualquer dia, mas o dia dos dias. Deus meu, que grande amor Vós nos tens. Que havemos de neste dia fazer? Pergunto-vos hoje. Que sentimentos tomam vossos corações? “Entristecer-nos? Tremer? Temer? – pergunta Padre Vieira – Encarcerar-nos? Sepultar-nos? Meter-nos na sepultura donde Cristo saiu? A esta pergunta não se pode responder do púlpito; do confessionário sim! Se estais em estado de pecado mortal, temei e tremei, e cause-vos grande tristeza a ressurreição; mas se estais em graça de Deus, e tendes propósitos firmes de a conservar, alegrai-vos, ponde a vossa alma e o vosso coração muito de festa, e não temais” (Sermão da Páscoa, 1658).

Pois se muitos de vós estais a vos incomodardes com tais palavras sinto-me mui honrado, pois que a um pregador do Evangelho em primeiro lugar há que ter amor a Cristo, e depois a coragem. Dirá Paulo: “Denunciai abertamente as obras das trevas” (Ef 5, 11). Pois a dia mais oportuno que este para fazê-lo?

Peçamos ao Senhor que, no dia que foi vencida a morte, possamos com Ele ressuscitar à uma nova vida. Que sejamos reflexos do Seu amor bondoso. Pedimos que desperte a Igreja, para que seja purificada e continue a dar testemunho de santidade aos homens de hoje, fazendo com que eles possam ler o Evangelho em nossas vidas.

Concluíndo este artigo aproveito para formular a todos vós os meus votos de uma Santa Páscoa!

Com Cristo crucificados

Hoje o Senhor oferece-se por nós todos, dando sua própria vida como preço pela nossa salvação. Ah, dia de luto e de grande tristeza! No entanto, esta tristeza não é aquela “que perdeu a esperança, que já não confia no amor nem na verdade e que por isso desagrega e arruína o homem por dentro”; porém, é “a tristeza que vem do abalo, da comoção provocada pela verdade, que leva o homem à conversão, à resistência contra o mal” (Bento XVI, Jesus de Nazaré, p. 88, Edit. Planeta). O Gólgota até este dia era o mais infame de todos os lugares do mundo; mas quando a cruz de Cristo ali elevou-se tornou-se o mais glorioso e santo lugar.

Há que dizer-se – e muitos não hão de concordar-me – que muitos corações são hoje verdadeiros montes Calvários. Do coração saem todos os homicídios, blasfêmias e ódios, injúrias e adultérios. De sorte que pior é o nosso coração do que o Calvário; pois lá se castigavam os delinquentes, mas nos corações formar-se-ão os crimes, delitos e todo o tipo de delinquencia. No Calvário castigavam-se as blasfêmias e falsos testemunhos, mas em nossos corações insistimos em fazê-los. No Calvário castigavam-se os ladrões, mas em nossos corações roubamos o tempo de Deus para dá-lo ao mundo. E eis por que mais horrendos são nossos corações do que o Monte Calvário. Mas da mesma forma que Cristo transformou aquele lugar em santo e venerável, assim cremos que o fará com nossos míseros corações; de lugares sujos tornar-se-ão lugares de santidade.

“Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim será levantado o Filho do Homem” (Jo 3, 14). Pois este é o dia da elevação; é este o dia de deixarmos nossos corações serem atraídos a Cristo. Ainda assim haverá quem, neste dia, resista com um duro e obstinado coração? Oh! Quão ingrato sois, e que tristeza tamanha causais vós, insolente coração. Como podes negar Aquele que é tua força e, consequentemente, colocar-te a beira da tua destruição? Outrora fora Cristo crucificado elevado no Calvário, seja agora elevado no altar dos nossos corações. Digo-vos que todo cristão [todos mesmo!], deveriam levar em seu coração um Crucificado. Pois creio que nos faria pensar muito antes de ferirmos o Senhor com nossos pecados.

Que exemplo é Vós Senhor meu! Nascente pobre e pobre haveríeis de morrer; nasceste despido e despido voltavas para Deus; nascestes com um puro coração, e assim voltavas para Deus, nascestes amando, e amando te aproximastes do Pai. Pois que em tudo haveria Cristo de nascer e morrer com igual medida, como pudera falar ontem. E que depois de tão excelso exemplo haja cristãos que mantenham a soberba no mundo! E que de tão excelso exemplo haja fiéis que disputam para ver que maior será! E que depois de tão excelso exemplo tramem os homens injúrias e ofensas a Vós em seus corações! Certo está Padre Vieira que diz: “Desacreditai-vos, fiéis, que fiéis não sois. Desacreditai-vos, cristãos, que cristãos não sois”. O que vos afirmo parece ser duro? Dureza maior há nos corações daqueles que se reúnem hoje para celebrar a Paixão, mas os seus interiores estão entregues a libertinagem e ao pecado. E se me faço parecer duro, mais duro são os que não se reúnem em nome de Cristo, mas vão à Igreja com o coração endurecido pelo pecado. Aqueles, no entanto, que buscam ao Senhor e de coração vão adorá-Lo e contemplar o sacrifício redentor da Sua Paixão, esses são bem aventurados, pois encontram toda a Sua benevolência e os seus braços abertos a os acolher.

Na segunda leitura, o autor da homilia aos Hebreus escreve: “Temos um sumo sacerdote eminente, que atravessou os céus: Jesus Cristo, o Filho de Deus. Por isso permaneçamos firmes na profissão de fé” (4, 14). Esta mensagem dirigir-se-á, sobretudo a nós, cristãos. Devemos permanecer firmes no atual contexto da sociedade. Jesus penetra nos céus! Pois como Ele uma vez penetrou, também penetraremos para contemplar sua incessante face.

Só poderá estar com Cristo quem com Ele crucificar-se, uma vez que “da cruz brota a grande fecundidade” (Bento XVI, op. cit. P. 170). Ó tamanha desventura que nos chamemos cristãos mas não ajamos como se fossemos de Cristo. Mas vos digo que tenhais fé! Bons tempos hão de vir ao nosso encontro, mas precisamos nós também irmos ao encontro deles. Paulo dirá que com Jesus estava crucificado. Pois vede como este apóstolo amava incomensuravelmente a Cristo, a ponto de crucificar-se com Ele na mesma cruz. Christo confixus sum cruci! Estou crucificado com Cristo. E nós haveremos de perguntar: Não parece minúsculo este espaço? Não seria impossível caber menos que uma pessoa? Ora, digo-vos que não. Pois onde coubera Deus nós todos caberemos.

E com que cravos haveremos de ser crucificados? E quem serão os algozes a fazê-lo? Deixarei que agora fale um grande pregoeiro do Evangelho. Dirá Padre Antonio Vieira: “O primeiro cravo do temor de Deus prega-o um algoz, que se chama Pensamento da Morte; o segundo cravo do temor de Deus prega-o outro algoz, que se chama Pensamento do Juízo; e o terceiro cravo do temor de Deus prega-o outro algoz, que se chama Pensamento do Inferno” (Sermão da Crucifixão do Senhor). Quais cravos hão de ser usados no-lo sabemos; e quem haverá de fazê-lo sabemos também. Mas eis que deveríamos saber uma terceira questão: o que crucificaremos com estes três cravos? Em primeiro lugar haveremos de pregar o primeiro e maior dos nossos inimigos: os desejos impuros que de Deus nos apartam. Por meios destes as almas de muitos já se perderam e as de muitos haverão de perder-se. O segundo a ser crucificado deve ser os olhos, para que limitemo-nos a ver apenas aquilo que é salutar à nossa edificação e desprezemos os gostos de Satanás. E o terceiro que deve ser crucificado é a língua. Mas como crucificaremos a língua? Ela nos serve para a pregação do Evangelho. Sim, muito nos serve a língua; porém para nada servirá se, antes da língua, não mostrarem os exemplos que deveras vivo o cristianismo. A língua que não é crucificada há de servir ao Evangelho, mas também servir-se-á das coisas mundanas. Porém, a língua que está crucificada com Cristo somente poderá falar coisas santas e úteis, pois não lhe permitirá que fale o cravo do “Pensamento do Inferno”.

E vós? O que já crucificastes e o que havereis de crucificar? Ai de vós, que não vos crucificais com Cristo, mas, ao contrário, O crucificam hoje. E para todos os tempos houve Cristo que ser crucificado: passado, presente e futuro. Ai de vós! Outrora era o Senhor crucificado, não sabiam o que faziam os seus algozes, e por isso clama: “Pater, dimitte illis, non enim sciunt, quid faciunt – Perdoai-os, Pai, eles não sabem o que fazem” (Lc 23, 34). É amoroso e misericordioso Jesus a ponto de sacrificar-Se por nós. Mas, estas mesmas palavras que absolviam os seus assassinos nos condenam a nós. “Os que crucificavam a Cristo no monte Calvário merecem perdão e tem desculpa, porque não sabiam o que faziam, nem conheciam a quem crucificavam; mas quando crucificamos a Cristo com nossos pecados, não temos desculpa nenhuma, e somos totalmente indignos de perdão; porque cremos que Cristo é Deus, e cremos que morreu por nós, e cremos que nos há de vir a julgar, e contudo crucificamo-lo. Se o mesmo Cristo, advogado nosso, e que tanto nos ama, não achar com que nos defender, vede o que será de nós. Valha-nos sua misericórdia infinita, que só por ser infinita nos pode valer” (Pe. Vieira, op. cit.).

Horas de suplício terríveis passara o Senhor na cruz. Há dois suplícios que sofria Cristo: um interior e outro exterior; um que dilacerava o corpo e outro que dilacerava a alma. Padecia as dores da flagelação, da coroa de espinhos, dos cravos, da sede, da carne dilacerada. Mas padecia as blasfêmias dos que, não se contentando em vê-Lo crucificado, ainda o insultavam. Pois uma coisa pede Cristo: Perdoai-os! Ó coração tão amoroso, que ama mesmo aqueles que vos fazem mal. Mas, que deve ser o amor, senão a graça de rezar mesmo pelos que nos perseguem e nos amaldiçoam! Por duas vezes Cristo exercita o perdão na cruz: aos seus algozes e ao ladrão arrependido. “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43). Pecamos e tantas vezes quis Deus perdoar-nos. E ainda há os que pecam confiando na misericórdia de Deus, e a estes eu digo: ferida a justiça de Deus ainda recorremos a Sua misericórdia; mas se ferirmos sua misericórdia a que recorreremos?

Que Maria, mãe dolorosa, sempre aos pés da cruz, nos ajude em nossa caminhada rumo aos céus. Para que o Senhor, em sua infinita misericórdia se recorde de nós. Como disse o salmista: “Fortalecei os corações, tende coragem, todos vós que no Senhor confiais” (Sl 30, 25).

O amor põe-se a serviço

Hoje damos início ao Tríduo Pascal com a Santa Missa In Coena Domini, isto é, na Ceia do Senhor. Neste dia, os homens são chamados a identificar na cena evangélica o amor máximo que moveu os angustiados corações dos apóstolos, que dentro em breve já não mais teriam o Senhor entre eles. Quinta-feira Santa: dia em que manifestar-se-nos-á a maior prova de humildade que o Senhor transmitiu-nos. O Messias inclina-se perante os apóstolos e lava-lhes os pés e depois enxuga-os. O nosso Pontífice recordar-nos-á que “a subida para Deus acontece precisamente na descida ao serviço humilde, a descida ao amor, que é a essência de Deus e, portanto, a verdadeira força purificadora, que capacita o homem para conhecer Deus e vê-lo” (Bento XVI, Jesus de Nazaré, pag. 95, Edit Planeta). Sabendo que deveria voltar para o Pai, como nos relata o Evangelho de hoje (Jo 13, 1), ascender ao Céu, o Senhor desce, inclina-se, lavando os pés dos discípulos, e desta forma – assim querendo – Ele pode voltar ao Pai.

Diz-nos o Evangelista São João que Jesus estava ciente do que iria acontecer: “Sciens Jesus quis venit hora ejus ut transeat ex hoc mundo ad Patrem, cum dilexisset suos qui erat in mundo, in finem dilexit eos – Sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo ao Pai, como tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo, 13, 1). As palavras “até o fim”, para alguns comentaristas e exegetas, seria dizer que Jesus os amou até o momento da morte. Esta definição, no entanto, parece-me incompleta, pois, mais que na morte, o Senhor os amou na Ressurreição e os amará por todo o sempre. Também não nos disse o evangelista que amou mais, senão que na mesma proporção de como já os amava desde a sua encarnação e durante todos os dias de sua vida. Nunca Cristo amou mais nem menos.

De Deus veio e para Deus voltaria, assim Jesus o sabia. Para mostrar que o serviço, como o amor, deve estar arraigado no homem, em sua essência, faz com que seus apóstolos pudessem notá-lo. Ora, sabia Cristo que ao seu redor estava um traidor e um que iria negá-lo logo. E também destes lavou os pés. Não foram os pés de Pedro, Senhor meu, aqueles pés covardes que O seguiam de longe? Não são estes pés desleais de Pedro que irão levá-lo ao lugar onde negar-vos-á? Não são os pés de Judas os pés do traidor que levaram a guarda até o Horto? Pois prostrado diante deles estais? Sim! E contento-me em ver-Vos assim. Pois não seríeis Vós quem sois, meu amado Jesus, nem vosso amor seria amor, nem fora vosso, se o pudessem mudar as ingratidões perpetradas pelos homens ou os agravos por eles ditos. Pois, se nestes homens tamanha foi a ingratidão, maior foi o vosso amor.

Quanto a ti, Judas, tivestes um coração endurecido e envenenado por Satanás. Estavas obscurecido pela sombra das trevas, não permitindo, assim, ver quão excelso é o amor do Senhor que estava disposto a perdoar-te. Mas nem este gesto moveu-te as duras entranhas. E por que não excluiu o Senhor a Judas? – Pergunto-me curiosamente eu e vós vos perguntais com devoção. Digo-vos que não o excluiu porque este dia não seria do julgamento, mas do amor, e o amor verdadeiro a ninguém exclui, mas é capaz de manifestar-se ainda quando somos traídos.

“Jesus… levantou-Se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura” (Jo 1, 4 – 5). Santo Agostinho de forma bela narra esta ação de Jesus: “Tirou Seu manto Aquele que, sendo Deus, aniquilou-se a Si mesmo; cingiu-Se com uma toalha Aquele que verteu Seu Sangue para com ele lavar as manchas do pecado” (Sto. Agostinho apud Sto. Tomás de Aquino, Catena aurea). Oh, divindade tão simples e tão incompreensível! Amar-Vos não me seria suficiente, senão amar-Vos e servir-Vos; pois Vós por primeiro nos servistes. Que seja o homem a servir a Deus não nos é surpresa; mas Deus servir ao homem? Pois quanto estupor não causar-nos-ia hoje ver o Filho de Deus inclinado ante a nós para lavar-nos também os pés?! Tão inusitado gesto só poderia deixar uma imensa perplexidade nos Apóstolos. Aquele que hoje nos inclinamos para adorar, se inclinou por primeiro pra servir-nos. Quiçá o exemplo de Cristo possa infundir em nossos corações um profundo amor e humildade.

Enquanto estava a lavar os pés eis que chega a vez de Pedro e este, surpreso, lhe perguntara, como também nós O perguntaríamos: “Domine, tu mihi lavas pede – Senhor, Vós quereis lavar-me os pés?” (Jo 13, 6). E Jesus lhe afirma: “Quod ego facio, tu nescis modo, sciens autem postea. Dicit ei Petrus: Non lavabis mihi pedes in aeternum. Respondit ei Jesus: Si non lavero te, non habebis partem mecum – O que agora faço tu não entendes, mais tarde, porém, o compreenderás. Disse-Lhe Pedro: Nunca me lavarás os pés. Respondeu-lhe Jesus: Se eu não te lavar os pés, comigo não hás de ter parte (vv. 7 – 8). Hoje continua o Senhor a lavar-nos, não mais com água, mas com Seu próprio Sangue vertendo na cruz. Pois se na primeira lavou os pés dos apóstolos, agora lava-nos para que com Ele possamos ter parte, purificando-nos de todos os pecados.

Santo Agostinho, São Beda e outros escritores, hão de afirmar que a lavagem dos pés haveria de ter iniciado por Pedro, a quem Cristo sempre priorizou como chefe dos apóstolos. Outros antigos comentaristas – Orígenes, São João Crisóstomo, Eutímio – afirmam que ela teria iniciado por Judas “para pagar ao traidor o mal com o bem e comovê-lo por meio de um benefício singular, bem como advertir-nos de que devemos agir semelhantemente com nossos inimigos” (Maldonado, Comentário aos quatro Evangelhos, p. 754). Se nos diz o Evangelho que chegou a vez de Pedro, logo haveria de ter ao menos um antes dele.

Depois de terminar tão portentoso exemplo de humildade, voltou o Senhor e assentou-se, perguntando aos que lhe eram tão caros: “Scitis, quid fecerim vobis? – Compreendeis o que vos fiz?” (v. 12). De maneira enfática pergunta o Senhor se sabiam, mostrando que não. Desta forma, disposta a narrativa evangélica, na primeira parte estava a demonstrar a sabedoria de Cristo, na segunda, a mostrar a ignorância dos homens.

Paulo na Carta aos Coríntios dirá o que foi-lhe passado sobre a Ceia do Senhor. “Na noite em que ia ser entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: ‘Isto é o meu corpo entregue por vós. Fazei isto em memória de mim’. Do mesmo modo, depois da ceia, tomou também o cálice e disse: ‘Este cálice é a nova aliança no meu sangue. Todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em minha memória’” (1º Cor 11, 23-25).

A Igreja, com a Sucessão Apostólica, é incumbida pelo Senhor para que perpetue sua presença na terra por meio da Eucaristia.

Hoc facite in meam commemorationem – Fazei isto em minha memória. Filhos – diz-nos Cristo hoje – tudo dei por vós. Dei a minha vida, o meu sangue, dei-me todo por amor de vós e não quero nenhuma outra paga de vós, senão que vos recordei de mim. De tantas coisas que nos fez e disse o Filho de Deus nenhuma, digo-vos, [nenhuma!] é de nos entristecer mais nossos corações do que este pedido. Que o Deus, que por nós se fez homem e se doou inteiramente chegue a pedir que dEle nos recordemos? Oh! Amor! Oh! Quão grande é a bondade divina! Mas oh ingratidão humana! “É Deus tão amoroso e tão benigno que nos pede a nossa memória, e somos tão duros e tão ingratos, que é necessário a Deus que no-la peça” (Padre Antonio Vieira, Sermão do Mandato).

Em memória de Cristo e em Seu nome, a Igreja administra os Sacramentos.

Hoje a humildade vence a arrogância de Satanás. Hoje Aquele que se inclina faz-se pão para nutrir a nossa caminhada. Não deixemos que Jesus seja esquecido! Não deixemos que a nossa sociedade chegue ao êxito de sua descristianização. A voz do Senhor ressoa também em nossos dias, e busca acolhida em nosso coração. Seu exemplo é gritante para os homens de hoje, fartos por uma autossuficiência e arrogância que os aparta mais ainda de Deus.

Rezemos, pois, neste dia, para que o Senhor encontre-nos abertos a Sua Palavra. Que o Cristo, que outrora inclinou-Se para lavar os pés dos apóstolos, receba todo o nosso louvor. E a Ti Maria, Mãe do divino amor, elevamos uma prece, neste dia, para que a humanidade encontre repouso em Jesus Cristo, que em tudo nos é exemplo.

Nossos dias como os dias de Noé

Mais uma vez, com o Domingo de Ramos, somos chamados a adentrarmos na Semana Santa, tempo de, no silêncio, meditarmos sobre os últimos dias de Jesus nesta terra e sua gloriosa Ressurreição.

Eis, meus irmãos, que mais uma vez nos é chegada a Santa Semana. E agora cabe-me perguntar, não apenas a vós, senão que também – e antes de tudo – a mim, o que fizemos nesta Quaresma? Como nos aproveitamos dela para, como nos disse o Senhor por meio do profeta Joel em sua tão já escutada e tão nova proposta, convertermo-nos e rasgarmo,s os corações e não as vestes? (cf. Jl 2, 12-13). Agora, aproximando-nos das jubilosas festividades pascais vemos que o tempo está para encerrar-se. O sol da Ressurreição já desponta seus primeiros raios, e muitos ainda não se voltaram ao Senhor.

Santo Agostinho, São Basílio e São Pedro Crisólogo comparam os quarenta dias da Quaresma aos quarenta dias do dilúvio universal. Naqueles dias, por quarenta dias, fez Deus sobre a terra chover castigo; nestes dias faz chover abundantemente sua misericórdia. Mas sendo verdade que o amor de Deus por nós é incomensurável, apesar de nossas perversidades, o Senhor faz com que a chuva de misericórdia não cesse. Porém, como recordara o tão ilustre Padre Antonio Vieira: “Somos os homens tão protervos, que nem por bem, nem por mal pode Deus conosco: os castigos não nos emendam, as misericórdias não nos abrandam” (Sermão de Ramos).

Notemos que o mesmo que sucedeu-se àqueles antigos homens de coração endurecido no primeiro dilúvio a nós nos acontece neste outro que vivenciamos.

“Começou a chover o dilúvio de Noé: alagaram-se na primeira semana os vales e os quartos baixos dos edifícios; subiram-se os homens aos quartos altos. Choveu a segunda semana; venceram as águas os quartos altos, subiram-se aos telhados. Choveu a terceira semana; sobrepujou o dilúvio os telhados, subiram-se às torres. Choveu a quarta semana: ficaram debaixo das águas as torres e ameias mais altas, subiram-se aos montes. Choveu a quinta semana; ficaram também afogados os montes, subiram-se finalmente às árvores, e assim estavam suspensos e pegados nos ramos. Postos neste estado os homens já não tinham para onde subir, e não lhes restava mais que uma das duas: ou nadar, ou acolher-se à Arca, ou deixar-se afogar e perecer no dilúvio” (Idem).

Oh! Vejamos neste espelho o que hoje acontece à nossos dias verossímeis ao dilúvio, e talvez pior do que eles, visto que, se no dilúvio primeiro estavam os homens com os corações endurecidos para Deus; neste segundo há os que nem mesmo acreditam nEle. E não há vida mais vazia, desnorteada e sem sentido, fundamentada em um existencialismo descabido, sem uma verdadeira racionalidade, do que aquela onde Deus já não mais é o centro e o manancial de fortaleza. Sobre isso nos dirá o Santo Padre ao afirmar: “Somente a fé no único Deus liberta e ‘racionaliza’ realmente o mundo. Onde ela desaparece, o mundo se torna racional apenas aparentemente” (Bento XVI, Jesus de Nazaré, pag. 157, Edit. Planeta). Assim, os nossos dias hão de ser, e já o são, piores que os de Noé.

Desde o princípio da Quaresma quer Deus conquistar as almas, e nós sempre a nos retardarmos. “Passou a primeira semana da Quaresma, guardamo-nos para a segunda; passou a segunda, deixamo-nos para a terceira; passou a terceira, esperamos para a quarta; passou a quarta, dilatamo-nos para a quinta; passou a quinta, apelamos para a sexta; já estamos na sexta e na última semana deste dilúvio espiritual, já estamos como os do outro dilúvio, com as mãos nos ramos das árvores, ou com as árvores dos ramos nas mãos” (Padre Antonio Vieira, op. cit).

Noutro dilúvio não puderam salvar-se a todos, pois a uns não lhes era sabido da existência da Arca; outros não souberam nadar. Há neste dilúvio, no entanto, inúmeras portas abertas por nosso Salvador e pelas quais podemos ingressar. Naquele todos os homens morreram, só Noé e sua família salvaram-se; neste, morreu e afogou-se tão somente o divino Noé, para que a todo gênero humano fosse concedida a salvação.

Eis, pois, a semana em que deveis converter-vos, vós que até agora tendes passado a Quaresma despercebidos do tempo favorável à nossa salvação, perdendo tantos dias que pudéreis abrir os olhos, entrando em vossos corações e ouvindo estonteante a voz do Senhor, que deveras nos ama. Já não podem tornar os dias que, outrora tivemos, escorregaram por nossas mãos sem que dele nos aproveitássemos; os vindouros – até a quinta-feira in Coena Domini – não nos são mais que três dias reservados aos mais descuidados. Aproveitai-vos deles para reconciliar-vos com o Senhor! Como nos recordara o salmista: “Deus não desprezou nem rejeitou a miséria do que sofre sem amparo; não desviou do humilhado sua face, mas o ouviu quando gritava por socorro” (Sl 21, 25).

Agora seja-me permitido deter-me por um instante na Epístola paulina aos Filipenses, que para este dia nos é apresentada como segunda leitura. O texto é um hino que provavelmente já existia e era recitado nas comunidades cristãs. Paulo utilizar-se-ia dele para urgir aos Filipenses que se comportem de maneira humilde, como no-lO fez Cristo. Mas, além disso, o hino não pode ser ab-rogado de sua autonomia teológica profundamente rica.

É notória a evocação do despojamento de Cristo, que não se apegou a sua condição divina, mas “humilhou-se fazendo-se obediente até a morte – e morte de cruz” (2, 8). Cristo é o protótipo, por excelência, do cristão; seja enquanto Pastor; seja enquanto pregador; seja enquanto obediência; seja enquanto humildade. Mas, que em tudo, estejamos com os olhos fixos no Senhor, como nos diz o salmista (cf. Sl 122). Por meio da obediência Deus glorifica o Seu Filho acima de todas as coisas, constituindo-O Senhor do mundo, Senhor dos senhores. Não nos tardemos em adorá-lo, pois Ele não irá tardar-Se em salvar-nos. Aquele que assumiu a “forma de escravo” (Fl 2,7) é o Rei dos reis. Sua entrada em Jerusalém, assentado sobre um jumento, mostra, como nos afirma Zacarias, que uma das suas características de Messias é a humildade (cf. Zc 9, 9). Sim! O Senhor não entra em uma carruagem digna aos reis. E por quê? – perguntar-nos-emos. Porque Ele, melhor que ninguém, sabe que o Seu Reino não é dos dinheiros e dos prazeres. Não é da corrupção e da ambição; não é do ouro. As verdadeiras características deste são o amor, a humildade e a fé. Eis o verdadeiro tesouro do cristão! Não está visível aos nossos olhos, mas pode ser contemplado com os olhos da fé. Ele é uma Pessoa: Jesus Cristo, Filho de Deus! E eis que o vemos a caminho de Jerusalém. Apressemo-nos à sua frente, e prostrando-nos por terra O adoremos.

Ele voltará! E assim terá de sê-lo para que possa findar toda a história da humanidade. Não virá rodeado de pompas e adornado com ouro, não obstante ser o Verdadeiro e Único Senhor. Aproveitai o tempo que vos será oportuno. Lembrai-vos de quantas semanas se têm passado sem que dela tenhais tirado proveito. E pode ser que esta seja a última semana para alguns de nós. Quantos viveram a passada que não vivem esta, e quantos vivem esta e não viverão a vindoura! Pois se soubéssemos que esta será a última para alguns de nós, o que faríamos? Pois o que faríeis façais não meramente por medo do inferno e da morte, mas na certeza de amar a Jesus e de tê-lo ofendido.

Oh! Meu boníssimo Senhor! Peço-vos perdão por ter-vos outrora ofendido. Não Vos peço respostas, mas sabedoria para encontrá-las. Não vos peço imunidade contra as tentações, mas coragem para enfrentá-las. Não Vos peço santidade, mas forças para conseguir alcançá-la. Não Vos peço o céu, mas que ilumines a minha caminhada, para que trilhando o verdadeiro caminho, possa eu alcançá-lo.

Maria, Mãe do Autor e Senhor da vida, concedei-me, por vossa intercessão, a humildade que levou vosso Filho a obedecer, até o derramamento salvífico de Seu sangue.