São Bento: o homem que nada antepôs a Cristo

Publicado originalmente no Reflexões Franciscanas

Celebramos neste dia 11 de julho a Festa do trânsito de São Bento, que resignou-se aos preceitos evangélicos e procurou conformar sua vida ao mistério de Cristo, fazendo-se, ele mesmo, portador da humildade e da perseverança na feliz expectativa celestial.

Bento – que duplamente o foi “por graça e por nome”, como afirma São Gregório Magno –, homem de vida austera, nasceu em Núrsia em 480 e fundou uma das maiores ordens monásticas do mundo, a Ordinis Sancti Benedictus (OSB, conhecido como beneditinos). É este santo uma fulgurante luz não apenas para a Europa, do qual é Padroeiro, mas também para todo o mundo sedento de Cristo, Luz verdadeira e esperança dos povos.

O exemplo deste grande Patriarca, que retirou-se para o silêncio de uma gruta no deserto e logo depois fundou o seu primeiro mosteiro e a sua autêntica fidelidade à Igreja e ao Evangelho, conclamam toda a humanidade a aderirem ao projeto salvífico em um mundo que não mais preza pelos valores autênticos, entretanto busca comodidade nos mais diversos meios de atrações fúteis que se propõem a causar apenas um momento de êxtase sem garantir a felicidade plena, pois só em Cristo, só naquele que é a Verdade, poderemos encontrá-la. Um lema que poderíamos identificá-lo é aquilo que ele próprio propôs-se a viver: “In nihil Christo Praeponere – Nada antepor a Cristo”. Absolutamente nada! Não era apenas um pai, mas era também um mestre do amor, um sinal de que o amor de Cristo modifica e toca o homem em seu sentido singular. 

O valor de todas as ações da Igreja, dos ritos, dos santos, dos documentos, só possuem plenamente fundamento se tiverem como base o Amor de Cristo, amo que renova, que perdoa, que sana as feridas. Se o homem quer experimentar a verdadeira face da Igreja, experimente antes o amor que vem de Cristo e pelo qual nos unimos a Ele. Corremos o risco de cairmos no ativismo devido as demasiadas atividades, tão corriqueiras, tão cotidianas, e esquecemos de olhar para o Cristo, de ver que sem Ele a vida do homem se reduz a um nada, transitamos neste mundo apenas como seres vazios, que sempre buscarão fora aquilo que pode se achar dentro.

A importância de Bento para a história dá-se sobretudo pela grande colaboração que ele exerceu mas também por meio da congregação por ele fundada. A pureza de vida do santo pai e o exercício da firmeza mostram que não se pode apenas buscar um ritualismo ou uma vida sem misericórdia e sem o sentido essencial. Como ele dirá: “Eis que pela sua piedade nos mostra o Senhor o caminho da vida”.

“Nós que deixamos tudo e te seguimos; que haveremos de receber?” (Mt 19,27). A resposta do Senhor explica o que significa este tudo: “Todo aquele que tiver deixado casa, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos, campos por causa de meu nome, receberá cem vezes mais e terá como herança, a vida eterna” (Mt 19,29). Sim, o santo homem de Deus renunciou a todas estas coisas e a nenhuma outra se apegou senão àquela que não lhe podia ser concedida neste mundo, mas que só ser-lhe-ia concedida no dia do seu glorioso trânsito. E podemos ter a certeza de que ele agora com Cristo compartilha deste cêntuplo.

Pobreza, obediência e castidade. Para os que não buscam uma realidade superior, transcendente e eterna, isto pode parecer uma demasiada renúncia, algo inexplicável, que só pode ser feito por pessoas que não estão em boa sanidade mental. Na realidade toda esta visão materialista e imediatista não trazem nenhum benefício ou longevidade para aqueles que almejam aproveitar “bem” a vida. O verdadeiro proveito da vida não está em como a vivemos agora, mas em como a viveremos na eternidade. Quem não se disponibiliza ao serviço e não se conforma com as renúncias, tampouco saberá carregar consigo o Reino de Deus, que é justamente o detentor de todas essas características.

E é esta singularidade de Bento que cativou a tantos outros discípulos seus, que, como ele, chegaram ao convívio dos santos: Escolástica – sua santa irmã -, Gregório Magno, Papa, Plácido, Mauro, entre tantos outros fiéis seguidores da Santa Regra do bem-aventurado pai.

Intrépido defensor do Evangelho e em meio a escuridão que se abatia sobre a sua época, o Santo Abade, realizava maravilhosos feitos, como a própria ressurreição – segundo nos relata São Gregório Magno na biografia que escrevera sobre Bento – de um jovem.

É significativo o zelo e caridade pastoral, mas também a firmeza no agir contra as ciladas do inimigo com que o santo homem de Deus carregava sempre consigo. Jamais deixara ele de propagar as maravilhas do Senhor; jamais sua boca deixaria de louvá-lo, mas ele faz de si mesmo uma doação total à ação de Cristo, um luzeiro que brilhava não com um fogo próprio, mas com o fogo de Cristo.

Prezava também ele pelo silêncio, e na sua regra escreveu (cap. 6):

Façamos o que diz o profeta: “Eu disse, guardarei os meus caminhos para que não peque pela língua: pus uma guarda à minha boca: emudeci, humilhei-me e calei as coisas boas”. Aqui mostra o Profeta que, se, às vezes, se devem calar mesmo as boas conversas, por causa do silêncio, quanto mais não deverão ser suprimidas as más palavras, por causa do castigo do pecado? Por isso, ainda que se trate de conversas boas, santas e próprias a edificar, raramente seja concedida aos discípulos perfeitos licença de falar, por causa da gravidade do silêncio, pois está escrito: “Falando muito não foges ao pecado”, e em outro lugar: “a morte e a vida estão em poder da língua”. Com efeito, falar e ensinar compete ao mestre; ao discípulo convém calar e ouvir.

Por isso, se é preciso pedir alguma coisa ao superior, que se peça com toda a humildade e submissão da reverência. Já quanto às brincadeiras, palavras ociosas e que provocam riso, condenamo-las em todos os lugares a uma eterna clausura, para tais palavras não permitimos ao discípulo abrir a boca.

Silêncio, humildade, obediência e fé: os quatro pilares que sustentaram a vida deste santo homem, pelo qual a terra inteira pode usufruir das beneméritas graças da congregação beneditina. E morre o homem de Deus aos 67 anos, sem que nenhum bem levasse consigo, a não ser aquele que sempre tivera no coração: o Amor de Cristo.

Neste dia, faço chegar aos nossos irmãos beneditinos um cordial voto de felicidade e de constante incentivo à busca por aquilo que o Santo pai Bento nos ensinou outrora, nos ensina agora e nos ensinará por todos os dias, até que se cumpra nossa missão terrena.

Celebramos também o onomástico pontifício de Sua Santidade, nosso amado Pastor, Bento XVI. Também ele procura configurar sua vida a Cristo pelo exemplo e a intercessão de São Bento. Nosso Papa não se deixa envaidecer pela sua sabedoria, mas – como ele mesmo disse – sempre se coloca como “mendigo” diante de Deus, para também ele poder receber a misericórdia e o perdão. Por isso, após tantas investidas satânicas para tentarem abalá-lo e derrubá-lo, ele permaneceu intrépido, sem jamais perecer diante do poder das trevas e sem jamais persuadir-se por aqueles que queriam astutamente enganá-lo. Seja Deus louvado no céu e na terra, como também seja o Papa, representante legítimo de Cristo, louvado entre nós, para a maior glória de Deus e da Igreja.

E agora, rezemos:

Crux Sancti Patris Benedicti
Crux Sacra Sit Mihi Lux
Non Draco Sit Mihi Dux
Vade Retro Satana
Numquam Suade Mihi Vana
Sunt Mala Quae Libas
Ipse Venena Bibas

A Igreja: ordenamento salvífico do Pai

O mistério salvífico de Cristo, desdobrado na fragilidade humana, culmina como fonte redentora e salvífica para a humanidade que é atormentada pelo pecado. Este mistério não é constituído de uma escolha nossa, mas parte de um desígnio do Pai e da sua vontade, necessitando de uma adesão e abertura na disponibilidade humana. Na sociedade hodierna, temos visto como que uma tentativa de neutralização da atividade eclesiástica, sobretudo no âmbito social. A grande argumentação é que a Igreja não pode se envolver nas questões sociais como o aborto, o uso de contraceptivos, a eutanásia. Mas, desde quando a vida é uma questão de joguete político ou meramente social? Acaso poderia deixar a Igreja de exercer sua atividade missionária no mundo, desobedecendo assim ao mandamento do Mestre e sendo infiel à finalidade para a qual existe?

O confrontamento existencial do homem moderno com o seu próprio “eu”, como dissemos em um dos artigos passados, tem levado muitos a se colocarem ou colocarem um outro fenômeno como principiador ou mantenedor de sua existência. A questão existencial torna-se complexa a partir do ponto de vista em que a analisarmos. Para os materialistas somos apenas constituídos daquilo que é palpável, que pode ser visto e cheirado.

Kierkegaard, pai do existencialismo, apresentava o homem como aquele que é o único responsável em dar significado à sua vida e em vivê-la de maneira sincera e apaixonada, apesar da existência de muitos obstáculos e distrações como o desespero, ansiedade, o absurdo, o tédio e a alienação.

Mas, será realmente que esta visão estaria certa em sua totalidade? Pode o homem exercitar esta certa autonomia que possui e fazer aquilo que quer sem que se sinta prejudicado e sem que sinta ter prejudicado os outros? São Paulo dirá: “Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém” (1 Cor 6, 12). Para o homem pós-moderno o conveniente não mais existe, mas deveria ser substituída pela palavra satisfação. Não se usa mais a razão para discernir entre o necessário e o secundário, mas faz-se uma azáfama, sobretudo com a perda dos valores éticos e morais.

O que é permitido e o que é conveniente? Certamente que nem tudo o que é permitido é também conveniente. Tem-se uma arma na mão, posso atirar, isso me é permitido, pois tenho o objeto em mãos e tenho munições, mas não me é conveniente uma vez que contraria meus princípios morais que se baseiam na eticidade dos mandamentos. Permissão é aquilo que se pode fazer, algo que me é possível; conveniência é aquilo que se deve fazer, o que me traz vantagens, crescimento (mas não um crescimento subjetivo, pois no Reino de Deus o nosso único crescimento deve ser o espiritual).

Ora, o mundo, que contrapõe valores basilares da fé cristã, apresenta uma nova mentalidade, um novo ethos, não mais firmado naquela tradição outrora firmada pelos antigos e pela fé cristã, mas a sua autossuficiência o faz ir além e romper com esses laços sólidos para se unir a laços frágeis, que se rompem com qualquer ventania.

Mas, retornando ao aspecto filosófico, Heidegger, filósofo existencialista, nos propôs a questão do Ser-aí-no-mundo (Dasein), que é um sinônimo do existencialismo do homem. Dirá ele que só o homem, enquanto ser racional, poderá responder à pergunta que ele lançara (Que é ser?). Outros animais que não são constituídos dessa condição não podem criar expectativas quanto a esta resposta porque nem sequer sabem o que é ser, ou o que é pensar. Além do mais ele dirá que somente o ser humano capaz de questionar é um “ente privilegiado”, que possui uma compreensão de si e dos outros.

Nem todo ser humano é capaz de pensar, logo nem todo ser humano é um ser-aí? Para Santo Agostinho, o tempo só se pode ser considerado levando em conta a razão; se o homem possui algum distúrbio mental, logo ele não sabe o que é o tempo e nem mesmo possui a noção de tempo, poderíamos então atribuir isto a este pensamento heideggeriano?

Mas, se o Ser-aí é o homem na medida em que existe na existência cotidiana, do dia-a-dia, junto com os outros homens e em seus afazeres e preocupações. É este contemplar do velamento e do desvelamento da verdade que faz o homem angustiar-se por respostas que possam, ao menos parcialmente, satisfazer às suas indagações que lhe são inerentes.

Na vicissitude dos tempos o homem tem exercitado, com grande vivacidade, o pensamento heideggeriano do ser-aí, esquecendo-se até da sua finalidade primeira: alcançar a perfeição. Ao contrário do que alguns filósofos diziam, o homem é sim um ser perfeito e todo ser é perfeito se exerce a finalidade para a qual foi criado, segundo Tomás de Aquino, sendo os elementos compostos mais perfeitos que os simples, de forma que ao querer a diversidade dos seres Deus quisesse simultaneamente a perfeição em seu conjunto. A natureza é constituída de um ordenamento e todo este ordenamento exerce-se como um grau de perfeição que não lhe é próprio, mas vem de uma força superiora. Sobre estes graus de ordem pode-se olhar a quarta via de Tomás para provar a existência de Deus.

Bem, sobre esta questão poderia ainda lançar uma indagação: Se a natureza é constituída de uma ordem e de uma estética física pode realmente o mundo ter surgido da desordem do Big Bang – uma vez que seria uma explosão? Não quero que me vejam aqui como opositor da física moderna, mas apenas é uma indagação à qual sempre me proponho fazer. E mais: Se surgiu de uma explosão deve ter havido uma realidade ordenadora por trás, pois “do nada nada provém” e de uma caos não pode provir a ordem.

Mas, assim como a natureza é constituída de um ordenamento, a Igreja também o é. A Igreja é esta “revelação” da face trinitária, um dos braços de Deus que é sustentada pelo Espírito Santo e congregada pelo amor de Cristo. Não prega aquilo que lhe agrada, mas aquilo que outrora foi-lhe transmitido pelos apóstolos e pelo próprio Cristo. Também na Igreja todos os seres criados por Deus devem possuir um ordenamento, sem jamais fazer com que um se sobreponha a outro, mas cada um exercite com fidelidade a missão que lhe é confiada pelo próprio Cristo.

Assim, se o mundo incide contra aquilo que pregamos é porque a nossa pregação está realmente transmitindo os valores do Evangelho e bem exercemos nossa missão, e se bem exercemos nossa missão, nossa finalidade cristã, estamos trilhando as vias da perfeição que se encerram em Deus. A constituição moral da humanidade pode alterar-se, mas a constituição evangélica nunca se altera. Um bom cristão vive o evangelho independente do que o governo achar certo ou errado. Quem é cristão verdadeiramente se opõe ao aborto, ainda que o governo ache que o aborto é um meio “moral” de matar.

Claro que quem apoia o aborto dá graças a Deus por não ter sido abortado. Paradoxo? Não! Falta de moral, de caráter, de ética. Precisamos nos destituir de todos os “pré-conceitos” e reavaliamos a nossa mentalidade moderna. E quando digo “nós” afirmo também que entre os cristãos tem aqueles que desonram o Evangelho que leem ao colocarem-se a favor de iniciativas como o aborto, a eutanásia, o divórcio, que são verdadeiras pragas que corroem os ambientes familiares.

A constante busca de Deus deve mover o ser humano para a limpidez espiritual e moral. Ser cristão é mais do que preocupar-se com a sacralidade litúrgica (também é isso, e todos sabem como prezo pela liturgia bem sacralizada), mas é também exercitar a vivência da liturgia em comunhão com o outro, com aquele que clama a nosso auxílio. É estar aberto a todos os que buscam, por Cristo, com Cristo e em Cristo, a unidade com o Seu Corpo Místico, fora do qual ninguém pode salvar-se.