Ressuscitados com Cristo e em Cristo

Dic nobis Maria/ Quid vidisti in via?/ Sepulcrum christi viventis/ Et gloriam vidi resurgentis – Diz-nos, Maria/ Que viste no caminho?/Vi o sepulcro de Cristo vivo/ E a glória do Ressuscitado” (Sequencia Pascal).

Tendo transcorrido o período quaresmal em práticas penitências, lágrimas e orações, agora queremos comemorar com o Ressuscitado a nossa vitória. Também nós, com Ele, devemos ter a certeza que não seremos jamais abandonados, mas que o Senhor zela por nós, nos ama e nos convida a sermos partícipes da sua glória.

Sim, queremos hoje ver, também nós, a “glória do Ressuscitado”. A sequencia pascal expressa o desejo que brota de todo cristão que ouve a boa notícia da ressurreição. O Senhor, que jazia no sepulcro, que por nós padeceu e morreu, agora vence a morte; destrói o pecado. E desse memorável dia deriva a verdadeira libertação que só o Cristo pode dar-nos. Não obstante as formas apresentadas pelo mundo, que se propõe como pretenso salvador, suas vias podem até oferecer uma felicidade momentânea e uma aparente finalidade salvífica, mas que logo se atrofiarão e perecerão. É Deus, de fato, Aquele capaz de descerrar para o homem as vias da verdade, que o leva à perene esperança e a um conforto como aquele que os anjos ofereceram às mulheres.

Mas o mesmo Deus que oferece o conforto é também Aquele que oferece o confronto: o confronto do homem consigo, com a sua autossuficiência e pretensão; confronto sobretudo de vontades. O homem não pode sujeitar Deus à sua vontade, mas sujeitar-se à vontade de Deus. Essa é a verdadeira Páscoa pela qual nós passamos hoje: A Páscoa de submetermos nossas vontades ao querer de Deus. Por isso São Paulo nos dirá: “Se ressuscitastes com Cristo, esforçai-vos por alcançar as coisas do alto” (Cl 3,1).

Alcançar as coisas do alto é o anseio do homem contemporâneo, embora não de todos. Pensamos sobretudo nos anseios de paz daqueles povos que padecem tribulações. A paz do Ressuscitado reine sobre o Oriente Médio que vive momentos de conflitos, de modo particular aqueles causados pelo radicalismo religioso. Que a misericórdia de Deus restaure as feridas causadas pela guerra e leve ao respeito pela liberdade religiosa e cultural da população.

Pedimos também pelo Egito e por toda a população africana. Que o Senhor ressuscitado conforte os povos sofridos pelas perseguições e ameaçados pelo cenário político ou religioso. Que as etnias alcancem a paz, verdadeiro dom para a humanidade.

O Senhor instaure a paz também à Ucrânia, ao Líbano e aos demais Países que sofrem por conflitos armados.

Que o Cristo Ressuscitado nos ilumine com a sua luz fulgurante. Que Ele nos livre das diversas formas de destruição daqueles que se apoiam sobre a força física para fazer valer a sua vontade. Que o acontecimento da ressurreição nos faça mostrar aquilo que de fato é o plano de Cristo: um plano de amor. Que seja a Virgem Maria a nos ajudar nesse caminho.

Feliz e Santa Páscoa!

Paz: Dom de Deus; necessidade da humanidade

A verdadeira paz é aquela que brota do coração de Deus e que se eleva como um grande brado em todo o mundo. Paz é o que hoje pedimos à Síria e para os seus habitantes atormentados pelo ódio irracional que nasce no coração do homem. Seja esta verdadeira paz.

Não façamos nosso ideal o ideal do mundo, mas que o mundo esteja no ideal de Deus. Paz é hoje o ideal de Deus para quantos são perseguidos sobretudo por causa da fé que professam. Que a paz não seja somente vontade do homem o sabemos, mas é antes de tudo vontade de Deus.

“Conhece-te a ti mesmo”, diz o antigo e sábio adágio retratado na filosofia, conclamando os homens a um renovado olhar para si, para o seu interior e, consequentemente, para a sociedade na qual estamos inseridos. Este olhar renovado penetra todas as formas de auto-conhecimento que possam haver e do conhecimento aparente do próximo, uma vez que a ninguém é dada a prerrogativa de conhecer o interior de outrem, mas somente ao Espírito, do qual nos diz São Paulo que “penetra tudo, mesmo as profundezas de Deus” (1Cor 2,10). É por meio Dele, sabedoria revelada, que nos vem a inspiração dada, como fora dada a Cristo e aos apóstolos.

Mas este conhecimento, se é obra autêntica do Espírito, não leva o homem a fechar-se em seu mundo e ser apático às realidades que o cercam e corriqueiramente clamam por sua maior atenção. Assim, não poucas vezes, permanece desatendido o brado proveniente dos nossos irmãos sofredores mesmo daqueles discriminados e mortos por sua fé. Nosso pensamento se dirige a esses  pelos quais agora temos particular atenção, os irmãos da Síria, que como os mártires de outrora vertem seu sangue pelo Cristo e se tornam evangelhos vivos e mártires do nosso século tão marcado pela dor e pelo sofrimento. Onde é derramado o sangue dos mártires é também derramado o Sangue de Cristo.

A calamidade cerca-se destes e a dor ronda suas casas. Nós, porém, não deixamos de estender-lhes nossa proximidade e votos de paz no Senhor, fazendo-nos sofredores e colaboradores deles. É repreensível que vendo tamanho sofrimento nos negligenciemos da nossa missão de cristãos, fazendo-nos escusos do dever concreto de testemunharmos o Evangelho frente este vasto campo de missão.

Alertamos de forma igual aos políticos para que atentem àqueles que sofrem e parem com esta violência desnecessária. Fazemos ecoar novamente o brado do Venerável Servo de Deus Papa Pio XII: “É com a força da razão, não com a das armas, que a Justiça progride. E os impérios que não são fundados sobre a Justiça não são abençoados por Deus. A política emancipada da moral atraiçoa aqueles mesmos que a desejam” (Radiomensagem Un’ora grave). Atraiçoados são também os povos que hoje, como naquele período terrível, são submetidos a este trágico e desumano ato que em nada edifica, mas tudo faz perder.

Rezemos juntos pela Paz. Só no coração dos homens sensatos ela pode nascer. E não nascerá de outra forma senão pela ordem, na qual quis o Altíssimo assim dispor e da qual nos recordara o Beato João XXIII: “A paz na terra, anseio profundo de todos os homens de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus” (Cart. Enc. Pacem in Terris, 1).

Com Maria, Rainha da Paz, queremos fazer nosso o ideal daquele que é a Verdadeira Paz e que se oferece ao mundo como segurança verdadeira e Ordem plena de todas as coisas: Cristo Jesus.

A Igreja: ordenamento salvífico do Pai

O mistério salvífico de Cristo, desdobrado na fragilidade humana, culmina como fonte redentora e salvífica para a humanidade que é atormentada pelo pecado. Este mistério não é constituído de uma escolha nossa, mas parte de um desígnio do Pai e da sua vontade, necessitando de uma adesão e abertura na disponibilidade humana. Na sociedade hodierna, temos visto como que uma tentativa de neutralização da atividade eclesiástica, sobretudo no âmbito social. A grande argumentação é que a Igreja não pode se envolver nas questões sociais como o aborto, o uso de contraceptivos, a eutanásia. Mas, desde quando a vida é uma questão de joguete político ou meramente social? Acaso poderia deixar a Igreja de exercer sua atividade missionária no mundo, desobedecendo assim ao mandamento do Mestre e sendo infiel à finalidade para a qual existe?

O confrontamento existencial do homem moderno com o seu próprio “eu”, como dissemos em um dos artigos passados, tem levado muitos a se colocarem ou colocarem um outro fenômeno como principiador ou mantenedor de sua existência. A questão existencial torna-se complexa a partir do ponto de vista em que a analisarmos. Para os materialistas somos apenas constituídos daquilo que é palpável, que pode ser visto e cheirado.

Kierkegaard, pai do existencialismo, apresentava o homem como aquele que é o único responsável em dar significado à sua vida e em vivê-la de maneira sincera e apaixonada, apesar da existência de muitos obstáculos e distrações como o desespero, ansiedade, o absurdo, o tédio e a alienação.

Mas, será realmente que esta visão estaria certa em sua totalidade? Pode o homem exercitar esta certa autonomia que possui e fazer aquilo que quer sem que se sinta prejudicado e sem que sinta ter prejudicado os outros? São Paulo dirá: “Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém” (1 Cor 6, 12). Para o homem pós-moderno o conveniente não mais existe, mas deveria ser substituída pela palavra satisfação. Não se usa mais a razão para discernir entre o necessário e o secundário, mas faz-se uma azáfama, sobretudo com a perda dos valores éticos e morais.

O que é permitido e o que é conveniente? Certamente que nem tudo o que é permitido é também conveniente. Tem-se uma arma na mão, posso atirar, isso me é permitido, pois tenho o objeto em mãos e tenho munições, mas não me é conveniente uma vez que contraria meus princípios morais que se baseiam na eticidade dos mandamentos. Permissão é aquilo que se pode fazer, algo que me é possível; conveniência é aquilo que se deve fazer, o que me traz vantagens, crescimento (mas não um crescimento subjetivo, pois no Reino de Deus o nosso único crescimento deve ser o espiritual).

Ora, o mundo, que contrapõe valores basilares da fé cristã, apresenta uma nova mentalidade, um novo ethos, não mais firmado naquela tradição outrora firmada pelos antigos e pela fé cristã, mas a sua autossuficiência o faz ir além e romper com esses laços sólidos para se unir a laços frágeis, que se rompem com qualquer ventania.

Mas, retornando ao aspecto filosófico, Heidegger, filósofo existencialista, nos propôs a questão do Ser-aí-no-mundo (Dasein), que é um sinônimo do existencialismo do homem. Dirá ele que só o homem, enquanto ser racional, poderá responder à pergunta que ele lançara (Que é ser?). Outros animais que não são constituídos dessa condição não podem criar expectativas quanto a esta resposta porque nem sequer sabem o que é ser, ou o que é pensar. Além do mais ele dirá que somente o ser humano capaz de questionar é um “ente privilegiado”, que possui uma compreensão de si e dos outros.

Nem todo ser humano é capaz de pensar, logo nem todo ser humano é um ser-aí? Para Santo Agostinho, o tempo só se pode ser considerado levando em conta a razão; se o homem possui algum distúrbio mental, logo ele não sabe o que é o tempo e nem mesmo possui a noção de tempo, poderíamos então atribuir isto a este pensamento heideggeriano?

Mas, se o Ser-aí é o homem na medida em que existe na existência cotidiana, do dia-a-dia, junto com os outros homens e em seus afazeres e preocupações. É este contemplar do velamento e do desvelamento da verdade que faz o homem angustiar-se por respostas que possam, ao menos parcialmente, satisfazer às suas indagações que lhe são inerentes.

Na vicissitude dos tempos o homem tem exercitado, com grande vivacidade, o pensamento heideggeriano do ser-aí, esquecendo-se até da sua finalidade primeira: alcançar a perfeição. Ao contrário do que alguns filósofos diziam, o homem é sim um ser perfeito e todo ser é perfeito se exerce a finalidade para a qual foi criado, segundo Tomás de Aquino, sendo os elementos compostos mais perfeitos que os simples, de forma que ao querer a diversidade dos seres Deus quisesse simultaneamente a perfeição em seu conjunto. A natureza é constituída de um ordenamento e todo este ordenamento exerce-se como um grau de perfeição que não lhe é próprio, mas vem de uma força superiora. Sobre estes graus de ordem pode-se olhar a quarta via de Tomás para provar a existência de Deus.

Bem, sobre esta questão poderia ainda lançar uma indagação: Se a natureza é constituída de uma ordem e de uma estética física pode realmente o mundo ter surgido da desordem do Big Bang – uma vez que seria uma explosão? Não quero que me vejam aqui como opositor da física moderna, mas apenas é uma indagação à qual sempre me proponho fazer. E mais: Se surgiu de uma explosão deve ter havido uma realidade ordenadora por trás, pois “do nada nada provém” e de uma caos não pode provir a ordem.

Mas, assim como a natureza é constituída de um ordenamento, a Igreja também o é. A Igreja é esta “revelação” da face trinitária, um dos braços de Deus que é sustentada pelo Espírito Santo e congregada pelo amor de Cristo. Não prega aquilo que lhe agrada, mas aquilo que outrora foi-lhe transmitido pelos apóstolos e pelo próprio Cristo. Também na Igreja todos os seres criados por Deus devem possuir um ordenamento, sem jamais fazer com que um se sobreponha a outro, mas cada um exercite com fidelidade a missão que lhe é confiada pelo próprio Cristo.

Assim, se o mundo incide contra aquilo que pregamos é porque a nossa pregação está realmente transmitindo os valores do Evangelho e bem exercemos nossa missão, e se bem exercemos nossa missão, nossa finalidade cristã, estamos trilhando as vias da perfeição que se encerram em Deus. A constituição moral da humanidade pode alterar-se, mas a constituição evangélica nunca se altera. Um bom cristão vive o evangelho independente do que o governo achar certo ou errado. Quem é cristão verdadeiramente se opõe ao aborto, ainda que o governo ache que o aborto é um meio “moral” de matar.

Claro que quem apoia o aborto dá graças a Deus por não ter sido abortado. Paradoxo? Não! Falta de moral, de caráter, de ética. Precisamos nos destituir de todos os “pré-conceitos” e reavaliamos a nossa mentalidade moderna. E quando digo “nós” afirmo também que entre os cristãos tem aqueles que desonram o Evangelho que leem ao colocarem-se a favor de iniciativas como o aborto, a eutanásia, o divórcio, que são verdadeiras pragas que corroem os ambientes familiares.

A constante busca de Deus deve mover o ser humano para a limpidez espiritual e moral. Ser cristão é mais do que preocupar-se com a sacralidade litúrgica (também é isso, e todos sabem como prezo pela liturgia bem sacralizada), mas é também exercitar a vivência da liturgia em comunhão com o outro, com aquele que clama a nosso auxílio. É estar aberto a todos os que buscam, por Cristo, com Cristo e em Cristo, a unidade com o Seu Corpo Místico, fora do qual ninguém pode salvar-se.