O mistério salvífico de Cristo, desdobrado na fragilidade humana, culmina como fonte redentora e salvífica para a humanidade que é atormentada pelo pecado. Este mistério não é constituído de uma escolha nossa, mas parte de um desígnio do Pai e da sua vontade, necessitando de uma adesão e abertura na disponibilidade humana. Na sociedade hodierna, temos visto como que uma tentativa de neutralização da atividade eclesiástica, sobretudo no âmbito social. A grande argumentação é que a Igreja não pode se envolver nas questões sociais como o aborto, o uso de contraceptivos, a eutanásia. Mas, desde quando a vida é uma questão de joguete político ou meramente social? Acaso poderia deixar a Igreja de exercer sua atividade missionária no mundo, desobedecendo assim ao mandamento do Mestre e sendo infiel à finalidade para a qual existe?
O confrontamento existencial do homem moderno com o seu próprio “eu”, como dissemos em um dos artigos passados, tem levado muitos a se colocarem ou colocarem um outro fenômeno como principiador ou mantenedor de sua existência. A questão existencial torna-se complexa a partir do ponto de vista em que a analisarmos. Para os materialistas somos apenas constituídos daquilo que é palpável, que pode ser visto e cheirado.
Kierkegaard, pai do existencialismo, apresentava o homem como aquele que é o único responsável em dar significado à sua vida e em vivê-la de maneira sincera e apaixonada, apesar da existência de muitos obstáculos e distrações como o desespero, ansiedade, o absurdo, o tédio e a alienação.
Mas, será realmente que esta visão estaria certa em sua totalidade? Pode o homem exercitar esta certa autonomia que possui e fazer aquilo que quer sem que se sinta prejudicado e sem que sinta ter prejudicado os outros? São Paulo dirá: “Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém” (1 Cor 6, 12). Para o homem pós-moderno o conveniente não mais existe, mas deveria ser substituída pela palavra satisfação. Não se usa mais a razão para discernir entre o necessário e o secundário, mas faz-se uma azáfama, sobretudo com a perda dos valores éticos e morais.
O que é permitido e o que é conveniente? Certamente que nem tudo o que é permitido é também conveniente. Tem-se uma arma na mão, posso atirar, isso me é permitido, pois tenho o objeto em mãos e tenho munições, mas não me é conveniente uma vez que contraria meus princípios morais que se baseiam na eticidade dos mandamentos. Permissão é aquilo que se pode fazer, algo que me é possível; conveniência é aquilo que se deve fazer, o que me traz vantagens, crescimento (mas não um crescimento subjetivo, pois no Reino de Deus o nosso único crescimento deve ser o espiritual).
Ora, o mundo, que contrapõe valores basilares da fé cristã, apresenta uma nova mentalidade, um novo ethos, não mais firmado naquela tradição outrora firmada pelos antigos e pela fé cristã, mas a sua autossuficiência o faz ir além e romper com esses laços sólidos para se unir a laços frágeis, que se rompem com qualquer ventania.
Mas, retornando ao aspecto filosófico, Heidegger, filósofo existencialista, nos propôs a questão do Ser-aí-no-mundo (Dasein), que é um sinônimo do existencialismo do homem. Dirá ele que só o homem, enquanto ser racional, poderá responder à pergunta que ele lançara (Que é ser?). Outros animais que não são constituídos dessa condição não podem criar expectativas quanto a esta resposta porque nem sequer sabem o que é ser, ou o que é pensar. Além do mais ele dirá que somente o ser humano capaz de questionar é um “ente privilegiado”, que possui uma compreensão de si e dos outros.
Nem todo ser humano é capaz de pensar, logo nem todo ser humano é um ser-aí? Para Santo Agostinho, o tempo só se pode ser considerado levando em conta a razão; se o homem possui algum distúrbio mental, logo ele não sabe o que é o tempo e nem mesmo possui a noção de tempo, poderíamos então atribuir isto a este pensamento heideggeriano?
Mas, se o Ser-aí é o homem na medida em que existe na existência cotidiana, do dia-a-dia, junto com os outros homens e em seus afazeres e preocupações. É este contemplar do velamento e do desvelamento da verdade que faz o homem angustiar-se por respostas que possam, ao menos parcialmente, satisfazer às suas indagações que lhe são inerentes.
Na vicissitude dos tempos o homem tem exercitado, com grande vivacidade, o pensamento heideggeriano do ser-aí, esquecendo-se até da sua finalidade primeira: alcançar a perfeição. Ao contrário do que alguns filósofos diziam, o homem é sim um ser perfeito e todo ser é perfeito se exerce a finalidade para a qual foi criado, segundo Tomás de Aquino, sendo os elementos compostos mais perfeitos que os simples, de forma que ao querer a diversidade dos seres Deus quisesse simultaneamente a perfeição em seu conjunto. A natureza é constituída de um ordenamento e todo este ordenamento exerce-se como um grau de perfeição que não lhe é próprio, mas vem de uma força superiora. Sobre estes graus de ordem pode-se olhar a quarta via de Tomás para provar a existência de Deus.
Bem, sobre esta questão poderia ainda lançar uma indagação: Se a natureza é constituída de uma ordem e de uma estética física pode realmente o mundo ter surgido da desordem do Big Bang – uma vez que seria uma explosão? Não quero que me vejam aqui como opositor da física moderna, mas apenas é uma indagação à qual sempre me proponho fazer. E mais: Se surgiu de uma explosão deve ter havido uma realidade ordenadora por trás, pois “do nada nada provém” e de uma caos não pode provir a ordem.
Mas, assim como a natureza é constituída de um ordenamento, a Igreja também o é. A Igreja é esta “revelação” da face trinitária, um dos braços de Deus que é sustentada pelo Espírito Santo e congregada pelo amor de Cristo. Não prega aquilo que lhe agrada, mas aquilo que outrora foi-lhe transmitido pelos apóstolos e pelo próprio Cristo. Também na Igreja todos os seres criados por Deus devem possuir um ordenamento, sem jamais fazer com que um se sobreponha a outro, mas cada um exercite com fidelidade a missão que lhe é confiada pelo próprio Cristo.
Assim, se o mundo incide contra aquilo que pregamos é porque a nossa pregação está realmente transmitindo os valores do Evangelho e bem exercemos nossa missão, e se bem exercemos nossa missão, nossa finalidade cristã, estamos trilhando as vias da perfeição que se encerram em Deus. A constituição moral da humanidade pode alterar-se, mas a constituição evangélica nunca se altera. Um bom cristão vive o evangelho independente do que o governo achar certo ou errado. Quem é cristão verdadeiramente se opõe ao aborto, ainda que o governo ache que o aborto é um meio “moral” de matar.
Claro que quem apoia o aborto dá graças a Deus por não ter sido abortado. Paradoxo? Não! Falta de moral, de caráter, de ética. Precisamos nos destituir de todos os “pré-conceitos” e reavaliamos a nossa mentalidade moderna. E quando digo “nós” afirmo também que entre os cristãos tem aqueles que desonram o Evangelho que leem ao colocarem-se a favor de iniciativas como o aborto, a eutanásia, o divórcio, que são verdadeiras pragas que corroem os ambientes familiares.
A constante busca de Deus deve mover o ser humano para a limpidez espiritual e moral. Ser cristão é mais do que preocupar-se com a sacralidade litúrgica (também é isso, e todos sabem como prezo pela liturgia bem sacralizada), mas é também exercitar a vivência da liturgia em comunhão com o outro, com aquele que clama a nosso auxílio. É estar aberto a todos os que buscam, por Cristo, com Cristo e em Cristo, a unidade com o Seu Corpo Místico, fora do qual ninguém pode salvar-se.
Curtir isso:
Curtir Carregando...