Questão de verdade ou política? Um olhar sobre a crise

Nunca como nos últimos dias – precisamente mais de 500 – temos ouvido repetitivamente a palavra crise. Diariamente, em todos os horários, nos vários meios de comunicação, o termo coloca em cheque um drama não tão atual, que já se encontrava desde os tempos da escrita da Sagrada Escritura, e até mesmo bem antes. Esta palavra em seu original grego assume uma tradução múltipla, tais como: distinção, decisão, sentença, juízo, separação. Um cenário que não se limita a locais, mas ultrapassa fronteiras e tempos. Detenho-me, contudo, ao cenário atual do Brasil. O problema aqui é também um problema de identidade, uma perda no senso profundo da mesma. Acredito que daqui derivem em grande parte os problemas relacionados ao social: crise de identidade. Não penso – e nem tenho competência – em dar uma resolução às questões essenciais que maculam a história do país com a má-administração e a inassiduidade de caráter. Estes deveriam suscitar o bem comum e a estabilidade, não apenas das estatais e das cotas de inflação, mas de todo o povo que os elegeram como representantes; não tiranos. Desejo provocar – positivamente – dois aspectos: corrupção e o Estado.

1. A política quando não serve ao bem comum torna-se tirana; e sua tirania incide diretamente contra a verdade, trazendo consequências muitas vezes irreparáveis. Quem não se recorda da ideia de Hitler, apresentada em primeiro momento como “boa”, mas de fundo inumano e malicioso? Em si, quem não gostaria de criar uma sociedade pura, livre da desumanidade e das divergências tão contundentes? Sentimos como que as palavras de São Paulo a nos instigar nessa purificação, nos convidado a ser “irrepreensíveis e inocentes, filhos de Deus íntegros no meio de uma sociedade depravada e maliciosa, onde brilhais como luzeiros no mundo” (Fl 2,15). Mas o erro de Hitler foi reduzir o homem a correntes étnicas e a sua sexualidade, negligenciando por má-fé que a verdadeira purificação não deve ser feita entre negros e brancos, judeus e não-judeus, alemães ou poloneses. E desta forma o seu plano evoluiu para o campo da demência e da psicopatia. O autoritarismo tomou o lugar da verdade e os campos de concentração passaram a ser o lugar da expressão daquilo que de pior pode haver no homem. Penso que se quisermos realmente renovar a humanidade, não o faremos impondo isso, mas propondo-lhe a partir de dentro, do interior e da consciência de cada um. Nesta sociedade, não mais veremos o dramático e desumano cenário da condução para Auschwitz. Ao invés, seremos todos conduzidos para o esplendor que emana da verdade.

O dever de exercer a política era, para os gregos, uma questão sobretudo moral e de obrigatoriedade do cidadão, que implicava no uso da razão e das virtudes naturais, aquelas quatro cardeais: prudência, temperança, justiça e fortaleza. Como ainda se pode nutrir esperança quando evidenciamos que há muito a moralidade deixou de passear nos recintos políticos? Ou mesmo sabendo que “em um mundo sem pontos fixos de referência não existe mais direção”[1]. No máximo nos deparamos com vícios que são antônimos de virtudes. Pensar numa tirania neste cenário não deveria nos surpreender. Não mais uma tirania aberta como o nazismo e o comunismo, com os seus respectivos 6 e 100 milhões de mortos, mas uma execução silenciosa que mata antes de tudo a nossa esperança. Não quero igualar o sistema abusivo e absurdo do nazismo e do comunismo com a realidade atual, mas encontramos aqui um denominador comum: numa sociedade que faltam virtudes, sobram vícios, e a esperança – num olhar ulterior – é sempre suprimida pela ignominiosa sede de poder.

Santo Tomás de Aquino já advertira para que não permitíssemos que a nossa consciência se pusesse como nosso juiz, mas reconhecesse haver uma lei que a supera. Esta lei não é dada pela natureza no acaso; é ali posta desde a nossa origem. Por isso, a política não pode reivindicar para si um direito que não lhe compete, mas é a primeira a inserir-se também nestes aspectos delimitativos: lei divina e lei natural. A corrupção, para além de um vício, é uma injustiça que fere os princípios da lei humana, da lei natural e da aplicabilidade da justiça. Os seus praticantes parecem nos dizer: “Vejam! Nós zombamos da vossa boa vontade, dos vossos direitos e da nossa liberdade. Não estamos sujeitos aos vossos parâmetros”.

Aqui vem-me a mente o conceito que o mesmo citado Santo nos apresenta ao tratar da justiça, que já havia ganhado forma em Aristóteles: “justiça é dar a cada um o que lhe pertence”. Podemos apropriar-nos do que não nos pertence? Obviamente não; e a tentativa de fazê-lo se configura como uma ferida contra o sétimo mandamento. Mas é também um atentado a Constituição do País e ao Código Penal. A corrupção se configura, assim, como uma deformação do caráter e da natureza do homem porque viola um dos preceitos fundamentais de ordem natural: não furtar. Diria ainda tratar-se de um atrofiamento da consciência. Sem limites, o ser humano passa a ver-se como o próprio limite.

2. Diante desta exposição superficial, para não ir em profundidade, limito-me a tratar mais um aspecto incisivo na sociedade. É grande o drama humano, já o disse, no descaso consigo e com a verdade. Em última instância diria que ela parece tornar-se uma questão sempre mais pesarosa e inalcançável, mesmo que reconheçamos o influente papel de bons cidadãos e cristãos. Ainda com isso, não parece que tenham sido dados largos passos. A verdade, sobretudo no cenário político, parece limitar a ação dos que querem usar do poder para perpetrar ações injustas; por isso ela lhes parece não ser vantajosa. A dor que ela suscita não é sanada com algum remédio, mas com a própria reparação do mal.

O Estado deve ser o agente principal no combate contra a corrupção. Seu papel é de sustentar o bem comum e a ordem. Mas pode organizar-se quem não está organizado? O conceito e o papel do Estado foram laboriosamente formulados pelos gregos e trabalhados ao longo dos séculos pelos filósofos cristãos ou não cristãos. Tudo agora parece dinamitar-se na deturpação dos papeis e na execução abusiva dos mesmos. Santo Agostinho nos propõe o conceito de duas cidades: Cidade de Deus e a Cidade dos Homens. A definição da cidade de Deus seria a nossa ideia de eternidade, paraíso. Um lugar onde impera a perfeição e a imortalidade. A segunda é marcada pelo pecado original, concupiscível e perecível, na qual estão os vícios e as paixões.

Todos estamos nesta “balança” entre o local de Deus, a sua morada, e a “prisão” nesta vida terrena, com todas as suas aparentes atrações. É de nos surpreender que diante de toda a situação histórica da queda de Roma, a invasão dos bárbaros, o confronto com os cristãos, Agostinho nos apresente o Estado com uma função ético-moral, que seja capaz de promover a paz temporal e a felicidade. Promover a paz relaciona-se diretamente às necessidades básicas de um sistema político para com os membros de uma sociedade. Isaías em sua descrição dos novos tempos reafirma a promessa de paz. Era certamente o anseio de um povo que acabara de sair do exílio babilônico: “A justiça produzirá a paz” (32,17), escreve ele. Contudo, a justiça não pode ser autossuficiente. Ela “sozinha não se basta; e pode mesmo chegar a negar-se a si própria, se não se abrir àquela força mais profunda que é o amor”[2].

Sem dúvida, diante da dramática situação da política – particularmente no Brasil –, devemos retomar a consciência de que não se podem subtrair as virtudes morais da sua conduta basilar. A política não tem a última palavra sobre o homem. O seu papel é a conscientização dos cidadãos e a organização do Estado, reconhecendo os seus limites diante da justiça, das virtudes cardeais e do direito divino e natural. Se não convém que procuremos implantar um sistema de teocracia hoje, que a meu ver já não tem suporte a oferecer na suficiência do quadro atual, menos ainda se pode dar espaço ao positivismo, que não reconhece nada acima de si.

Como recordei ao início, desejei apenas suscitar uma provocação nestes dois aspectos para recordar que o nosso foco está muito detido nas estatais, mas quase nada se diz ou se pensa sobre o homem, quem comente tais delitos. O problema está além dos bilhões roubados, está no interior dos nossos governantes e do nosso sistema político que já se afeiçoou a corrupção. Recordo as palavras, endereçadas sobretudo aos políticos, com as quais inicia-se o livro da Sabedoria: “Diligite justitiam qui judicatis terram ­– Amai a justiça, vós que governais a terra” (1,1).

Espero não ter sido invasivo demais para forçar uma mudança ou evasivo demais para não suscitar o desejo de que, colocando a mão na consciência, se reconheçam como cuidadores do Estado, não como fidalgos. Votos de uma boa “re-conscientização”.

[1] Joseph Ratzinger, O Elogio da Consciência. Discurso pronunciado em 1991, durante a lectio magistralis na Università degli Studi, em Siena, na Aula Magna do Reitorado. Encontrado em Ser Cristão na Era Neopagã, vol. 1. 1º ed., p. 98.

[2] João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2004, 10.