Sacrosanctum Concilium. Parte doze. A Santa Missa: o alvo e a flecha, o princípio e o objetivo.

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 O nº 10 da Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium é relativamente grande uma vez que engloba dois parágrafos. Grande em assuntos abordados, como não poderia deixar de ser e o é em praticamente todos os parágrafos do documento, como também é grande em tamanho físico. Vejamos o primeiro parágrafo do nº 10 para poder destrinchá-lo e analisá-lo coerentemente:

10. Contudo, a Liturgia é simultaneamente a meta para a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força. Na verdade, o trabalho apostólico ordena-se a conseguir que todos os que se tornaram filhos de Deus pela fé e pelo Batismo se reúnam em assembleia para louvar a Deus no meio da Igreja, participem no Sacrifício e comam a Ceia do Senhor.

O parágrafo menciona desde a meta para a qual a Igreja se dirige, passando pelo motor de onde a Igreja retira suas forças para desempenhar seu papel e atividade, até chegar ao esforço que a Igreja precisa empreender para alcançar a uma perfeita participação em seus objetivos.

Pois bem, é como entender cada uma dessas encruzilhadas para que não se tornem confusas a ponto de nos perdermos em meio a tantos caminhos.

O texto do parágrafo afirma que “a Liturgia é simultaneamente a meta para a qual se encaminha a ação da Igreja (…)”. O texto é claríssimo a demonstrar, não só aqui nessa frase, mas em toda e qualquer manifestação da Igreja sobe a liturgia da Santa Missa que esse é o fim principal da Igreja, afinal ali, na Santa Missa, é que se faz o sacrifício, conforme ordenado pelo próprio Cristo e onde se conserva Cristo crucificado e vivo, onde se conserva a comunhão e nosso compromisso renovado com esse projeto salvífico.

A encíclica de nosso saudoso João Paulo II é clara ao deixar, em todo o seu texto, desde o título, que aqui se trata da Igreja da Eucaristia, a Igreja que vive na e da Eucaristia. Suas palavras são implacavelmente diretas ao colocar a Eucaristia, portanto o sacrifício da Missa, em primeiríssimo lugar:

1. A Igreja vive da Eucaristia. Esta verdade não exprime apenas uma experiência diária de fé, mas contém em síntese o próprio núcleo do mistério da Igreja. (Encíclica Ecclesiade Eucharistia, Papa João Paulo II)

Na mesma encíclica o Papa João Paulo II ainda menciona:

“Por isso mesmo a Eucaristia, que é o sacramento por excelência do mistério pascal, está colocada no centro da vida eclesial.”

(Encíclica Ecclesiade Eucharistia, Papa João Paulo II, ponto 3, itálico no original)

Quando a Sacrosanctum Concilium afirma que “a Liturgia é a meta a qual se encaminha a ação da Igreja” é justamente desse caminho, o da Eucaristia, que ela quer falar. Sem a Eucaristia não existe Igreja, sem Santa Missa não existe Eucaristia. A conclusão fica clara como o sol: sem Santa Missa não há Igreja.

O próprio Concílio Vaticano II tratou de deixar nítida tal afirmação em outro de seus documentos, a Lumen Gentium, demonstrando a total coerência que não podia deixar de acontecer em um Concílio que, apesar das más-línguas, apenas propagou a continuidade dos mais de vinte que o antecederam, sem falha e sem ruptura, para desespero de muitos. Vejamos:

“(…)Pela participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã (…)”

Não há como negar, portanto, que a Liturgia é o centro da vida eclesial. Todos os demais pontos de conversão em que a Igreja se encontra são secundários, por mais que o mundo assim não veja.

Parece insensível fazer esse tipo de afirmação quando colocamos, por exemplo, as questões assistenciais. Entretanto, antes de pormenorizar, afirmamos: a Santa Missa é mais importante.

Em vários lugares pelo mundo já que não é exclusividade de nossa América Latina, a questão assistencial da Igreja é muito latente. Dificilmente deixamos de encontrar as chamadas Pastorais Sociais nas paróquias. Ninguém nunca disse que esse tipo de trabalho é proibido ou inconveniente, pelo contrário, contudo não pode, nunca, ser colocado acima da Santa Missa.

Sacerdotes que são verdadeiros líderes comunitários e desenvolvem um trabalho social invejável são de extrema importância e muito bem vistos, contudo sua preocupação deve igualmente girar em torna da dignidade litúrgica e mais ainda em torno da importância do sacrifício de Cristo na Santa Missa.

É preciso sempre lembrar que a função da Igreja é salvar almas. Distribuição de cestas básicas pode ser um dos caminhos, contudo não é o único, caso contrário, parafraseando nosso Papa Francisco: não seremos mais que uma gigantesca ONG.

É nesse sentido que devemos identificar todos os trabalhos que envolvem a Igreja, fora o trabalho litúrgico. Grupos de Oração, trabalhos pastorais do mais diversos e a trazer a dignidade a quem não tem, são temas e serviços muito caros à Igreja e muito bem vistos aos olhos de Deus. Trazem uma dignidade à alma que sem dúvida ajudará em nossa salvação e ajudará na salvação de tantos outros, contudo não é o principal, repito. A Santa Missa sim, o é.

Não a toa que a primeira oração do primeiro parágrafo do nº 10 da Sacrosanctum Concilium conclui que:

“(…) a Liturgia é simultaneamente a meta para a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força.”

Não só a Liturgia é a meta, o alvo e o objetivo maior, mas também é o princípio, o início de tudo quanto há, afinal quem mesmo é o alfa e o ômega (Ap 1,8; 21,6; 22,13)?

Pentecostes: Amor e Coragem no discipulado

“Et repleti sunt omnes Spiritu Sancto et coeperunt loqui aliis linguis, prout Spiritus dabat eloqui illis” (At 2,4)¹.

           formacoes66 Fala mal quem deseja falar todas as línguas e em nenhuma se detém, visto que nem tem tempo para aprimorar-se – já que deseja chegar ao conhecimento de todas – e tampouco terá a exatidão da compreensão, que tem os que em alguma detiveram-se. Assim o é conosco, assim o foi outrora com os apóstolos. Para as diversas nações que ali se encontravam, nenhuma era a compreensão pela diversidade de línguas; pardos não compreendiam os elamitas; romanos não compreendiam os mesopotâmicos; frígios não entendiam os capadócios e assim por diante. Parecia-nos esta a Babel, o caos, o desentendimento. Mas, notai! Os construtores de Babel foram confundidos por Deus, e no Cenáculo não foram confundidos, senão que unificados. Lá fizera o Senhor confusão onde havia unidade; cá, o Senhor faz unidade onde há confusão; lá os homens almejavam edificar uma torre que chegasse até o céu – que era a ideia de espaço físico onde Deus se encontrava – para que elevassem seu nome sobre a terra; cá os homens não edificavam torre, senão que estavam temerosos para irem ao encontro de Deus, para o testemunharem, para traçarem uma ponte que pudesse chegar até Ele. Comparai uma e outra e vereis que há uma inversão, por assim dizermos, entre Babel e o Cenáculo. O que naquela se perdera, nesta se restaurara; o que naquela se destruíra, nesta se edificara.

            Diz-nos também o evangelista que o Espírito aparece e todos Dele ficam “repletos”. Pois não ficaram cheios, mas repletos. E por quê? Porque aquilo que está cheio pode não estar repleto, mas tudo o que está repleto, em si, já está cheio – e mais que cheio, está pleno. E aqui, sim, cumpre-se aquilo que houvera predito o Senhor aos seus antes de elevar-Se aos céus: “Recebereis o poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra” (At 1,8).

Agora estão todos preparados e munidos da força interior para serem testemunhas, sem temor, sem tremor, levando somente o que por Si basta: O Espírito Santo. E por que vão eles aos “confins da terra” e não apenas à Palestina ou a Roma? Por que cada um dirige-se a um território diferente? Porque a salvação é para todos, não somente para alguns, isto é representado com maior clarividência na diversidade de povos acima citada. Todos tem a oportunidade de aderirem a salvação, mas não é a ninguém obrigado porque o Espírito, nos diz Paulo, é de liberdade. E porque testemunhar é servir e o amor é serviço, põem-se eles a irem a lugares tão distantes, espalhando o Reino de Deus e o Logos divino que permeia o homem.

Ao Filho de Deus, Segunda Pessoa da Trindade, atribui-se a sabedoria; ao Espírito, Terceira Pessoa, atribui-se o amor. Todo amor é serviço, entretanto, nem todo serviço é feito com amor. Quando se serve sob pretexto de algo, procurando favorecer-se ou sob ameaça de alguém, o amor perde o seu sentido mais belo: a liberdade, liberdade para amar e, por conseguinte, para servir. E os apóstolos são testemunhas autênticas de tal verdade. Ou não poderiam eles negar ao nome de Jesus, retornarem à comodidade de suas vidas e livrarem-se de todos os perigos e ameaças que a tarefa apostólica acarretaria? Pois optam por amarem o Amor, por servi-Lo e por darem as suas próprias vidas, encorajados pelo Espírito da Verdade, da Sabedoria, e do destemor dos homens, mas do Temor a Deus.

Eis, pois, que nenhum cristão sinta-se medroso diante das realidades do mundo! Se somos membros da mesma Igreja, se outrora viera o Espírito aos Apóstolos, agora Ele no-Lo é concedido, vem também a nós e, como fora a dois mil anos, o faz também hoje. Pois que medo há mais do que aquele de omitir-se no projeto salvífico de Cristo? Que vergonha maior há do que não testemunhar o Senhor da Igreja à qual somos membros? Que tristeza há mais do que aquela de estarmos na Igreja mas pensarmos como o mundo?

Hoje é a Festa do Espírito, mas é também a Festa da Igreja. O dia em que, encorajada pelo Espírito, ela abre-se ao mundo, torna-se missionária e testemunha; aliás, contraditório e perigoso é um missionário que não testemunhe. E justamente por ser missionária é também universal, fala várias línguas com apenas um entendimento. Não se entendem diversas coisas daquilo que ela diz nas diversas línguas, mas apenas uma – e necessária – cousa se-nos-é compreensível. A mesma doutrina é transmitida à variedade de línguas, de forma que todos possam saber que apenas um é seu ensinamento transmitido desde os tempos apostólicos. Bem o disse Paulo: “De fato, todos nós, judeus ou gregos, escravos ou livres, fomos batizados num único Espírito, para formarmos um único corpo, e todos nós bebemos de um único Espírito” (1Cor 12,13). Bebemos de um único Espírito porque não há de ter mais de um, mas somente aquele que inspira a Igreja durante seus dois milênios. Se alguém não bebe desta fonte, se alguém bebe de algum outro ensinamento, não bebe do Espírito de Deus mas de fontes desconhecidas e contrárias ao que se tem pregado por séculos.

Pouco é o que aqui tenho dito, muito é o que ainda há de se falar. Peçamos ao Espírito de Deus que nos conceda sabedoria, humildade e coragem para bem exercermos a nossa vivência cristã. Que Ele desça eficazmente sobre cada um de nós. Concede perseverança, Senhor, aos que falam em teu nome, e, como outrora fizestes descer língua de fogo sobre os apóstolos, dê fogo de língua aos nossos pregadores e com toda a Igreja clamemos: Veni, Sancte Spiritus, et emitte caelitus, lucis tuae radium – Vem, Santo Espírito, e mandai dos céus um raio de luz”.

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1.”Todos ficaram repletos do Espírito Santo, e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que falassem”.

3ª Sinfonia de Beethoven: Na dor e na alegria o homem compõe sua vida

Depois de um demasiado período de distanciamento entre a última sinfonia a ser meditada, chegamos a 3ª de Beethoven Em Mi Bemol Maior, também conhecida como Eroica. Parece-nos que aqui encontra-se um marco do fim da Era Clássica e do início da Era Romântica. É, como sempre em Beethoven, uma harmoniosa e expressiva manifestação da capacidade compositiva do mesmo.

Encontramos na sinfonia a presença de 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes em si bemol, 2 fagotes, 3 trompas em mi bemol, fá e dó, 2 trompetes em mi bemol e dó, tímpano e cordas.

A ideia inicial seria dedicar a sinfonia a Napoleão Bonaparte justamente porque via-se como admirador dos ideais da Revolução Francesa, entretanto tal ideal fora mais tarde frustrado quando Napoleão se auto intitulou imperador da França em maio de 1804, ao que Beethoven teria se revoltado ardentemente a ponto de riscar da página-título o nome de Bonaparte com uma faca de forma a fazer um buraco no papel. O compositor teria então mudado o nome da sinfonia para: Sinfonia eroica, composta per festeggiare il sovvenire d’un grand’uomo (“sinfonia heróica, composta para celebrar a memória de um grande homem”).

Segundo o seu assistente Ferdinand Ries:

“Ao escrever esta sinfonia Beethoven tinha pensado em Buonaparte, mas Buonaparte como Primeiro Cônsul. Naquela época, Beethoven tinha a maior estima por ele e o comparou aos máximos cônsules da antiga Roma. Não só eu, mas muitos dos amigos mais próximos de Beethoven, viu esta sinfonia em sua mesa, lindamente copiados à mão, com a palavra ‘Buonaparte’ inscrito no topo da página-título e ‘Ludwig van Beethoven’ na parte inferior. …Eu fui o primeiro a dizer a notícia de que Bonaparte havia se auto-declarado imperador, quando de repente teve um acesso de fúria e exclamou, ‘Então ele não é mais do que um mortal comum! Agora, também, ele vai pisar no pé de todos os direitos do homem, saciando somente a sua vontade; agora ele vai pensar que é superior a todos os homens, se tornando um tirano!’ Beethoven foi até a mesa, pegou a página-título, rasgou ao meio e jogou-o no chão. A página tinha de voltar a ser copiado e foi só agora que a sinfonia recebeu o título de ‘Sinfonia Eroica’” (Wikipedia apud A Era Napoleônica).

A execução da sinfonia deu-se pela primeira vez de forma privada para o seu grande amigo Joseph Franz Maximilian Lobkowitz em 1804, e a execução publica deu-se no seguinte ano.

Segundo conta-se, a recepção não foi assim tão caloroso, ao contrário, causou confusão e divisão nos ouvintes. A obra, duas vezes mais extensa que a de Haydn ou Mozart (já no primeiro movimento mais extensa que várias sinfonias), dividiu os ouvintes levando-os a afirmarem ser esta a obra-prima de Beethoven, entretanto outros diziam que seria uma busca de originalidade que acabou por se não ter.

Passemos agora a compreensão das divisões da sinfonia. O Primeiro Andamento é o Allegro com brio, que se inicia com alguns acordes que serão mais enfatizados na quinta sinfonia.

O Segundo Andamento (Marcia funebre: Adagio assai em dó menor) como o nome indica é uma marcha fúnebre. Trata-se de uma composição que é das mais pungentes de toda a história da música. Alterna entre a mais profunda expressão da dor com momentos de luz e esperança. E, de fato, é tão comovente e avassaladora, tão sentimental, que nos faz volvermos nossos olhos para uma cena de profunda dor; contudo, no decorrer da sinfonia é notório que da dor vai se criando um grito como que de esperança, uma luz daquela que nos diz o salmista: “Lux orta est iusto – Uma luz já se levanta para os justos” (Sl 97,11).

No Terceiro Andamento (Scherzo: Allegro vivace), tal como aliás e sobretudo o quarto, são por vezes considerados menores, ao ponto de um dos maiores críticos ingleses do século XIX ter afirmado uma vez “a interpretação da terceira sinfonia terminou e muito corretamente no fim da marcha fúnebre tendo as restantes partes sido omitidas”. Pessoalmente discordo desses. Só pela beleza e genialidade também presentes no terceiro e quarto seria impossível omiti-los como se não fizessem diferença.

O quarto andamento (Finale: Allegro molto), construído inteiramente a partir de um tema e variações em fuga bastante simples não deixa de ser uma composição extraordinária. Berlioz na sua análise das sinfonias de Beethoven, diz a respeito deste andamento que aqui Beethoven conseguiu construir a diferença de cores que existe entre o azul e o violeta.

E assim, na beleza da música clássica nós podemos contemplar cada sentido transcendental da vida, manifestações de dor ou de alegria, de vida ou de morte, mas que sempre nos levam a pensar, a reavaliarmos o valor da vida e fazermos desta o nosso lugar, o lugar do homem na história.

https://www.youtube.com/watch?v=MtYqcg53jEc

O amor de Deus: fundamento da Religião

“Antigamente convertia-se o mundo, hoje por que se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obras são tiros sem bala; atroam, mas não ferem (Pe. Antônio Vieira, Sermão da Sexagésima).

Após um longo período afastado por algumas razões de saúde e demais motivos superiores, hoje relendo o Sermão do Pe. Antônio Vieira, um dos  que mais me agradam nas obras e em todo o suporte retórico e teológico-espiritual que ele nos oferece, resolvi dedicar-me a este artigo, sobre o qual apenas pensei no papel da religião na nossa sociedade. É este um verdadeiro clamor às religiões e aos cristãos; um clamor que brota, mais do que nunca, diríamos, das entranhas do Espírito Santo. Ao chegarmos à conclusão do Tempo Pascal com a Solenidade da Ascensão do Senhor e de Pentecostes, somos impelidos por estas palavras que tocam o âmago da nossa fé e da nossa concepção de Cristianismo e de vivência cristã.

 Desta feita, torna-se necessária hoje uma tríplice pergunta: O que é a fé cristã? Como exercitá-la no mundo? Como transmiti-la aos demais? Tais indagações fazem-nos refletir e adequarmo-nos a uma realidade sempre pertinente e à qual nunca me canso de chamar a atenção: a configuração total a Cristo por meio do Evangelho, de uma autêntica vivência da Fé. Não podemos nos cansar de ser cristãos; não podemos brincar com o Evangelho; não podemos adequar o Evangelho a nós – triste realidade do mundo hodierno. Ou somos destemidos ou somos covardes; ou somos audazes ou somos retraídos; ou somos cristãos ou não o somos, mas não podemos fazer meio termo da Palavra de Deus, pois Deus não faz meio termo do gênero humano.

Diz-nos a Escritura: “Nem quente, nem frio, mas porque és morno vomitar-te-ei da minha boca” (Ap 3,16). Palavras duras, mas verdadeiras. Deve haver uma contrapartida entre o homem e Deus, uma reciprocidade. Deus não é interesseiro, mas a questão aqui é de um reconhecimento da nossa parte. Aquele que é Senhor de tudo, doador de todas as graças, quer depender do nosso amor, quer de nós apenas isso: que O amemos. E só desta forma pode o homem senti-lO: pelo amor. A religião (re-ligare = religar) deve ser a propiciadora deste encontro, aquela ponte que une o homem a Deus e jamais deve ser muro que separa, desvirtuando-se, assim, não apenas da sua nomenclatura, mas da sua missão primeira.

Pregar sobre Deus, anunciá-lO, mostrar o Seu amor ao mundo, esse é o dever da religião. Quando a religião deixa de pregar sobre Deus e o seu Evangelho e passa a ser transmissora de suas convicções institucionais ou de convicções pessoais de seus membros, deixa de ser semente de Deus e passa a ser joio do Diabo. Se queremos que o mundo olhe para a Igreja, contemple o crucificado, adore o Senhor morto e ressuscitado, não podemos fazê-lo apenas por palavras e por belas retóricas – como recordara Pe. Vieira –, devemos antes de tudo dar testemunho. Coloquemos Deus novamente no centro da religião e de nossas vidas. Quando retiramos Deus dos horizontes da sociedade, tendemos a mostrá-los apenas horizontes de morte, desfigurados pela falta de amor e de misericórdia, pela falta de fraternidade e de humildade.

Antes de proferirmos belas palavras dos púlpitos, batamos no peito e reconheçamos as nossas misérias e peçamos perdão por nossos pecados; depois poderemos anunciar aos outros aquilo que escrevemos primeiramente para cada um de nós, pois enquanto não ponderarmos nossas ações e buscarmos autenticidade nelas, não passaremos de meros semeadores de confusão daquilo que falamos mas não fazemos, denunciamos mas não corrigimos, proclamamos mas não escutamos.

Na Solenidade da Ascensão do Senhor sejamos como os Apóstolos, testemunhas destemidas do mandato de Jesus. Que o nosso medo não resvale na nossa boa audácia de discípulos e que a nossa fé não sucumba nas adversidades.

Sacrosanctum Conclium. Parte onze. Igreja, nossa bússola. O envio como condição.

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Em continuação ao número 9 do documento do Concílio Vaticano II intitulado Sacrosanctum Concilium, não é possível deixar em branco a menção de que esse parágrafo pode e deve gerar uma série de reflexões devido a sua complexidade e conteúdo. Dentro de quatro ou cinco linhas o parágrafo diz muito e pode ser destrinchado em diversos temas que geram diversas discussões.

É nessa esteira que vamos correr, caminhar e tentar chegar a algumas rasas conclusões. Vejamos, novamente, o que o parágrafo de número 9 nos fala:

9. A sagrada Liturgia não esgota toda a ação da Igreja, porque os homens, antes de poderem participar na Liturgia, precisam de ouvir o apelo à fé e à conversão: «Como hão-de invocar aquele em quem não creram? Ou como hão-de crer sem o terem ouvido? Como poderão ouvir se não houver quem pregue? E como se há-de pregar se não houver quem seja enviado?» (Rom. 10, 14-15).

Bom, que antes de participar da missa é preciso conversão, isso já estudamos e foi digno de um artigo inteiro anterior a esse, contudo que conversão é essa e de onde vem. Melhor ainda, como vem e como podemos reconhece-la?

O reconhecimento da verdadeira fé é um problema dos dias atuais. Como atuais me circunscrevo a cerca de quatro séculos, e piorando gradativamente. Aos que ainda não entenderam, falemos de forma clara: o protestantismo é um sério problema de identidade. Explico! A medida que a verdadeira fé não é reconhecida, ela, necessariamente, deve ser reconhecida em outros lugares, mesmo que errôneos, afinal, como pode ser estudado no catecismo: “O Homem é capaz de Deus” o homem sempre busca a Deus. Não adentraremos nesse tema agora.

O importante é verificar que o protestantismo é uma tentativa de encontrar Deus onde Ele não está. Quando se acha que encontrou algo onde esse algo não está, certamente estamos encontrando algo que se parece com o que buscamos, mas que não é exatamente o que buscamos. Pode até ser um vestígio, uma pista, mas não é exatamente nosso objeto de desejo.

Não há como se converter sem saber pra que lado se vai. Conversão pode acontecer de todos os modos para todas as teses e teorias, por mais absurdas que possam parecer. Por isso é preciso algo exterior que nos governe: uma bússola.

O que poderia ser essa bússola? O que pode poderia ser esse algo externo que nos guia? Bom, aos bons entendedores…

A Igreja precisa ser esse caminho para Cristo que “é o caminho, a verdade e a vida”(1Tm. 2, 5). Acontece que nesse caminho temos vários obstáculos, vários sacrifício e vários encontros. Esses encontros podem ser para nos ajudar ou nos atrapalhar. Nos ajudam porque querem fazer o bem ajudando alguém ou as vezes sem querer, da mesma forma, nos atrapalham querendo nos ajudar ou querendo fazer o mal. Isso acontece em todo caminho, certo?

Pois bem, com esse instrumento que Cristo nos deixou para que possamos ser guiados a Ele, nosso verdadeiro norte, essa bússola que é a Igreja, precisa de ponteiros regulados e em perfeita consonância, perfeita sincronia com essa bússola. Como fazer isso? Quem seriam esses ponteiros que nos indicam esse caminho dentro dessa bússola? Qual o grau de cumplicidade e sincronia entre os ponteiros e a bússola?

Em primeiro lugar sabemos que toda bússola aponta para o Norte. O Norte atrai seus ponteiros. A Igreja sempre aponta para Cristo justamente porque Cristo atrai os seus, mas não basta ser atraídos, precisamos ter certeza de que estamos sendo atraídos para o caminho certo e só uma bussola bem regulada pode nos garantir isso.

O número 9 do Sacrosanctum Concilium é claro ao ilustrar-se com a seguinte passagem bíblica:

«Como hão-de invocar aquele em quem não creram? Ou como hão-de crer sem o terem ouvido? Como poderão ouvir se não houver quem pregue? E como se há-de pregar se não houver quem seja enviado?» (Rom. 10, 14-15)

A passagem pede o uso da lógica. É um caminho que obrigatoriamente temos que seguir. Não há como crer na pessoa certa, muito menos invoca-lo se não for por meio de um caminho certo, um ponteiro bem sincronizado em uma bússola bem regulada e correta. É preciso que sejamos enviados para esse serviço que é a evangelização.

O Catecismo de João Paulo II em seu número 875 menciona esse mesmo contexto e nos dá um caminho muito claro sobre o assunto de envios:

875. (…) Ninguém, nenhum indivíduo ou comunidade, pode anunciar a si mesmo o Evangelho. «A fé surge da pregação» (RM 10,17). Por outro lado, ninguém pode dar a si próprio o mandato e a missão de anunciar o Evangelho. O enviado do Senhor fala e atua, não por autoridade própria, mas em virtude da autoridade de Cristo; não como membro da comunidade, mas falando à comunidade em nome de Cristo. Ninguém pode conferir a si mesmo a graça; ela deve ser-lhe dada e oferecida. Isto supõe ministros da graça, autorizados e habilitados em nome de Cristo. É d’Ele que os bispos e presbíteros recebem a missão e a faculdade (o «poder sagrado») de agir na pessoa de Cristo Cabeça e os diáconos a força de servir o povo de Deus na «diaconia» da Liturgia, da Palavra e da caridade, em comunhão com o bispo e com o seu presbitério. A este ministério, no qual os enviados de Cristo fazem e dão, por graça de Deus, o que por si mesmos não podem fazer nem dar, a tradição da Igreja chama «sacramento». O ministério da Igreja é conferido por um sacramento próprio.

(Catecismo da Igreja Católica)

Falando claramente, não é possível que alguém se autointitule pastor, bispo e até apóstolo como é o que vemos por ai. Ninguém nesse mundo tem autoridade própria para se conceder esses títulos. Esses títulos foram concedidos pelo próprio Deus na pessoa de Cristo e esses mandatos foram entregues a essas pessoas. Por Cristo ainda foi dado o múnus de dar continuidade a esses mandatos, conceder a sucessão, tudo sob a promessa de que nunca iríamos ser abandonados por Ele (Mt. 28, 20).

O sacramento da ordem é preciso para que os devidamente enviados possam proceder como pastores (padres e diáconos), bispos e sucessores reais dos apóstolos, da mesma forma é preciso que todos nós, católicos, leigos ou não, sejamos enviados pelo menos semanalmente, na Santa Missa, para o nosso trabalho de evangelização. Esse envio só pode ser feito por um sacerdote que, antes, fora devidamente enviado para isso e assim sucessivamente pelos séculos até chegarmos ao próprio Cristo.

O nosso Papa Emérito Bento XVI, então ainda no governo da Igreja, proferiu as seguintes palavras sobre esse assunto em audiência no Vaticano:

Num trecho sucessivo, diz ainda:  “A fé vem da escuta” (cf. RM 10,17). A fé não é produto do nosso pensamento, da nossa reflexão, é algo de novo que não podemos inventar, mas somente receber como uma novidade produzida por Deus. E a fé não vem da leitura, mas da escuta. Não é algo somente interior, mas uma relação com Alguém. Supõe um encontro com o anúncio, supõe a existência do outro que anuncia e cria comunhão.

(Audiência. Papa Bento XVI dia 10/02/2008, Sala Paulo VI, Roma)

Ou seja, é preciso que haja um outro anterior que tenha enviado aquele que agora nos prega e esse outro foi enviado por um outro que o antecedeu e assim viajamos pelos séculos em sentido inverso, retrocedendo, ininterruptamente até os apóstolos e o próprio Cristo.

E no mesmo dia, na mesma audiência, Bento XVI conclui:

E finalmente, o anúncio:  aquele que anuncia não fala por si, mas é enviado. Está dentro de uma estrutura de missão que começa com Jesus enviado pelo Pai, passa aos apóstolos a palavra apóstolos significa “enviados” e continua no ministério, nas missões transmitidas pelos apóstolos.

(

Audiência. Papa Bento XVI dia 10/02/2008, Sala Paulo VI, Roma)

E é assim que a Liturgia se desenvolve para os que anteriormente se converteram. A palavra de Deus é transmitida na Santa Missa e assim o é desde os primórdios quando os próprios apóstolos (enviados), enviavam outros sacerdotes e mesmo seus sucessores, para os mais distantes pontos da Terra a fim de divulgar uma palavra intacta, afinal, é a palavra de Deus.

E termina Bento XVI explicando tais pontos mais detidamente:

“Ele vos dará outro Paráclito o Espírito da Verdade”. A fé, como conhecimento e profissão da verdade sobre Deus e sobre o homem, “surge da pregação, e a pregação surge pela palavra de Cristo”, afirma São Paulo (RM 10,17). Ao longo da história da Igreja, os Apóstolos anunciaram a palavra de Cristo, preocupando-se em transmiti-la intacta aos seus sucessores, que por sua vez a comunicaram às gerações sucessivas, até aos nossos dias. Muitos pregadores do Evangelho deram a vida precisamente em virtude da fidelidade à verdade da palavra de Cristo. E assim, da atenção pela verdade nasceu a Tradição da Igreja. Como nos séculos passados, também hoje há pessoas ou ambientes que, ignorando esta Tradição plurissecular, gostariam de falsificar a palavra de Cristo e tirar do Evangelho as verdades que, na sua opinião, são demasiado incómodas para o homem moderno. Procura-se criar a impressão de que tudo é relativo: também as verdades da fé dependeriam da situação histórica e da avaliação humana. (Viagem Apostólica do Papa Bento XVI à Polônia. Homilia na cidade de Varsóvia, 26/05/2006)