Maria: Portadora de Jesus, a verdadeira Paz

“Que Deus nos dê a sua graça e a sua bênção, e sua face resplandeça sobre nós”. Assim aclamamos com as palavras do Salmo 66 à primeira leitura que contém a narrativa da antiga bênção sacerdotal sobre o povo da aliança. Celebramos neste primeiro dia do ano a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus. É bom iniciarmos um ano louvando a Deus pelos benefícios que realizou em Maria, e ao mesmo tempo louvá-Lo pelo mistério do Natal que completa hoje o ciclo das suas oitavas. Com este desejo é que expresso minhas saudações de um cordial feliz e santo ano novo aos nossos leitores e amigos.

Ao celebrarmos a Festa da Theotokos, queremos render graças a Deus porque em Maria nós aprendemos a contemplar a divindade e a humildade d’Aquele que veio ao nosso encontro e falou ao nosso coração, nos convidando a uma abertura sincera e comprometedora, deixando-nos moldar pela sua graça que perpassa o tempo e nos alcança desde a sua plenitude (cf. Gl 4,4). No limiar de um novo ano queremos celebrar o Dia Mundial da Paz. Já na primeira leitura, tirada do livro dos Números, podemos destacar a tripla menção do nome de Deus evocada na bênção que os sacerdotes pronunciavam sobre o povo israelita nas grandes festas religiosas. Esta vem como promessa de vigor, felicidade e dom de Deus: “Que o Senhor… te conceda a paz!” (6, 26); e o que pedimos hoje é isto: Que o Senhor conceda a cada um de vós, às vossas famílias, aos lugares frequentemente associados a conflitos armados, e ao mundo inteiro, a paz.

No decorrer da história, de fato, entre os trágicos acontecimentos, sentimos o peso das guerras que não foram superadas e continuam a marcar a vida da sociedade. O homem contemporâneo, não menos que os de outrora, vê seu país e a sua própria realidade sendo dilacerada pelos conflitos que se predispõem a um domínio passageiro e que finda no termo da vida desses que agora suspiram ameaças de morte.

Iniciamos este ano pondo-nos no caminho da paz e da reta consciência de dignidade, com a qual entendemos que nenhum homem pode violar o direito da liberdade de outrem, como nos recorda o Papa Francisco na Mensagem para o Dia Mundial da Paz deste ano: “Já não escravos, mas irmãos”. Em Cristo, Deus nos irmanou, nos fez dignos de sermos chamados filhos seus, como nos recorda São Paulo na segunda leitura (cf. Gl 4,6-7).

Mas há muitos que colaboram para a ausência da verdadeira paz quando se omitem a cumprir fielmente o dever que lhes fora confiado e a verdade que não defendem. Penso – como nos recorda ainda o Papa Francisco – naqueles que “para enriquecer, estão dispostos a tudo” (Mens. Dia Mundial da Paz 2015, nº 4) e se apoiam nos esquemas de corrupção, fechando-se ao clamor dos que estão desfavorecidos, quer pelo sistema, quer pelas condições sociais ou religiosas.  Que o Senhor conceda a estes que tem a sua dignidade deformada e a imagem de filhos de Deus manchada a graça de colocarem a mão na consciência para que, conclamados ao perdão, abram-se à misericórdia divina e sejam solícitos para com os irmãos que são, como eles, imagem e semelhança de Deus.

Hoje nós rezamos a fim de que a paz, anunciada pelo anjo aos pastores na noite santa, firme-se em lugar da violência: «Super terram pax in hominibus bonae voluntatis» (Lc 2, 14). Que o Senhor aparte de nós a violência e a injustiça: Cede lugar para que reine a alegria, o amor e a esperança. Abrace os homens secos pela falta de amor. Quem não ama, esse sim, está desprevenido, torna-se vulnerável aos seus instintos; usa da junção de corpo e alma para tramar o mal e passa a ser apenas um ser instintivo que maquina ardilosas e pérfidas ideologias. Se o amor pode tornar o mau, bom; o infeliz, feliz; o individualista, fraterno; o velho, novo; a falta de amor pode gerar homens findados em si, velhos interiormente, infelizes por nada conseguirem a seu modo. Abramo-nos ao amor! Deixemo-nos cativar pelo brilho que vence as lágrimas da tristeza. Que Vós, Rei da Paz, faça da morte, vida; do medo, coragem; da descrença, esperança.

Na carta aos Gálatas, que hoje escutamos, Paulo nos apresenta a adoção filial como um resumo da obra salvífica de Cristo na humanidade. Como parte resguardada nesta ação de salvação encontra-se a figura da maternidade divina de Maria, a Theotokos. Escreve ele: “Mas, ao chegar a plenitude dos tempos Deus enviou o Seu Filho, nascido de mulher, sujeito à Lei” (4, 4). Maria é a Mulher por excelência! N’Ela Deus operou o início do seu mistério redentor permitindo que concebesse o Verbo encarnando. Oito dias depois do Natal, portanto, essa festa encontra-se justamente colocada. De fato, antes do Concílio Vaticano II, a Maternidade Divina tinha lugar no dia 11 de outubro e a 1 de janeiro era celebrada a memória da Circuncisão do Senhor. Essa mudança, entretanto, não evidencia uma atenção menor ao Cristo. Pelo contrário, diríamos que antes de contemplar-se a figura de Maria, Cristo é imprescindivelmente o primeiro contemplado, uma vez que é por meio d’Ele que todas as coisas acontecem e se voltam.

O sentido do termo “plenitude” não só faz o cumprimento das profecias messiânicas como também assume o momento central da humanidade, um sentido absoluto de Deus que dá a sua Palavra – Verbo – definitivamente na história humana. Como recorda-nos o Santo Padre Bento XVI: “na perspectiva cristã, todo o tempo é habitado por Deus, não há futuro que não seja em direção a Cristo e não existe plenitude fora de Cristo” (Homilia, 1 de janeiro de 2011).

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O Evangelho nos faz alusão do silêncio e da discrição que marcam a feminilidade da figura da Mãe: “Maria, conservava todas estas coisas, ponderando-as no seu coração” (Lc 2, 19). Conservar os mistérios de Deus é virtude e atitude de sabedoria diante de tantas propostas adversas ao querer divino. A palavrar olhar em italiano se traduz como “guardare”. Em português poderíamos dizer que essa assume um sentido ulterior: Não basta olharmos o Menino deitado na manjedoura; não basta olharmos Jesus se não o guardamos em nosso coração e não fazemos d’Ele o nosso guia e a centelha de esperança num mundo marcado pelo desprezo e pela falta de fé. Podemos observar na história que todas as buscas que foram obstinadamente direcionadas ao próprio homem, e não a Cristo, deram lugar aos conflitos armados e à escravidão.

Para conservar os mistérios de Deus devemos manter o silêncio, a sobriedade e o respeito. Numa sociedade de tantos barulhos, São Francisco de Sales já advertira: “O bem não faz barulho, e o barulho não faz bem”. Que a singeleza de Maria seja também a nossa singeleza no trato com as coisas de Deus. O verdadeiro bem não é aquele que é explicitado ou aquele que fazemos questão de divulgar, mas sim aquele que oculta-se sob a humildade de Deus. Cristo desce numa noite de silêncio, segundo a liturgia belamente nos faz cantar: “Quando um profundo silêncio envolvia todas as coisas e a noite estava no meio do seu curso, a vossa Palavra omnipotente, Senhor, desceu do seu trono real” (Ant. ao Magn. 26 de Dezembro).

Na escola de Maria queremos pedir que o Senhor nos conceda a graça do discernimento e da escuta atenta à Palavra. “Podemos ter a certeza: se não nos cansarmos de procurar o seu rosto, se não cedermos à tentação do desencorajamento e da dúvida, se mesmo entre as muitas dificuldades que encontramos permanecermos sempre ancorados a Ele, experimentaremos o poder do seu amor e da sua misericórdia. O frágil Menino que a Virgem mostra hoje ao mundo, nos torne artífices de paz, testemunhas d’Ele, Príncipe da paz” (Papa Bento XVI, Homilia, 1 de janeiro de 2008).

A glória da humanidade na glória de Deus (Solenidade do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo)

Nesta noite, marcada pela esperança novamente cintilante, o Senhor desce ao nosso encontro, se faz um de nós e, assumindo esta condição, abre à humanidade as portas da salvação e da vida nova. A antífona da Missa nesta noite santa inicia-se com as palavras do salmista: “Dominus dixit ad meFilius meus es tu, ego hodie genui te – O Senhor me disse: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei” (Sl 2, 7). Essa frase, que primariamente pertencia ao rito da coroação do rei de Israel que em seu chamamento era introduzido como “filho de Deus”, hoje é usada pela Igreja no reconhecimento da filiação divina de Cristo e da sua eterna geração no Pai.

O salmo 2º é uma leitura prefigurativa daquele menino frágil e indefeso que hoje desce à terra, repleto de majestade e poder, tendo como único sinal a humildade e o canto dos anjos, que ouvimos no Evangelho. Aquele que é gerado por Deus desde toda a eternidade aceita também ser gerado no ventre de Maria, submetendo-se à condição da temporalidade e da morte. Ele é verdadeiramente Deus conosco! Ainda hoje o Filho – professado no Credo como consubstancial ao Pai – continua a ser gerado em Deus. Hoje também Deus vem ao nosso encontro, fala ao nosso coração e quer ser acolhido por cada um de nós.

Santo Irineu de Lyon escrevera de forma significativamente profunda: “O esplendor de Deus dá a vida. Consequentemente, os que veem a Deus recebem a vida. Por isso, aquele que é inacessível, incompreensível e invisível, torna-se compreensível e acessível para os homens, a fim de dar a vida aos que o alcançam e veem. Assim como viver sem a vida é impossível, sem a participação de Deus não há vida… Ao mesmo tempo [o Verbo], mostrou também, por diversos modos, que Deus é visível aos homens, para não acontecer que, privado totalmente de Deus, o homem chegasse a perder a própria existência. Pois a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus” (Lib. 4,20,5-7:Sch 100, 640-642.644-648).

Com o seu nascimento Jesus nos permite participar de Deus. Nós recebemos a verdadeira vida! Se em primeiro plano o pecado parecia ter vencido o homem decaído, em última instância há sempre a graça de Deus e aquele sinônimo que devemos atribuir-lhe: “amor”.

Onde há reconhecimento da glória de Deus, há de igual forma vida e esperança. Onde não se dá glória a Deus se dá glória às ideologias subjetivas e contrárias ao verdadeiro sentido da fé e da vida. Onde Ele não é adorado, mas antes, é desprezado e negado, prevalecem os obstáculos entre o divino e o humano: Ele não pode falar e tampouco ser escutado.

Irineu reafirma que Deus se compraz e é glorificado no “homem vivo”. Que coisa podemos entender destas palavras? Que sentido possui a vida nesta noite em que o seu Autor assume nossa condição? Poderíamos responder a estas perguntas com a mesma afirmação paulina escutada na segunda leitura: O homem vivo é aquele que abandona a impiedade e as paixões mundanas e vive neste mundo com equilíbrio, justiça e piedade (cf. Tt 2,12). Quanta injustiça e impiedade imperam no mundo onde Deus deveria reinar! Quantos homens velhos que não se abriram ao Menino que vem, permanecendo, assim, na dramática situação narrada pelo Profeta Isaías: “Botas de tropa de assalto, trajes manchados de sangue…” (Is 9,4). A marca do exílio israelita na Assíria ultrapassa os limites históricos e assume uma dimensão espiritual e sempre atual. Ainda hoje podemos acompanhar a catastrófica situação dos prófugos e refugiados, de modo particular os cristãos do Oriente Médio, forçados a deixarem sua pátria pela realidade que se lhes sobreveio, ou, muitas vezes, rejeitados em outros lugares. Mas a profecia de Isaías estende-se com uma consoladora promessa: “… tudo será queimado e devorado pelas chamas”. Como não rezarmos nesta hora: Sim, Senhor, sabemos que onde não existem homens vivos não haverá vida digna. Fazei brilhar a vossa luz sobre aqueles que praticam a impiedade e a injustiça. Queimai os calçados ruidosos e os trajes manchados de sangue, sobretudo os daqueles que negam o direito à vida aos indefesos: que ainda não nasceram ou os que já estão acometidos pela fragilidade da idade avançada. Sejais Vós a verdadeira vida numa sociedade que se ampara na lógica da força e do poder e nega-se a abraçar a humildade e ser portadora da “grande alegria” comunicada pelos anjos aos pastores.

Voltemos ainda à afirmação de Irineu: “A vida do homem é a visão de Deus”. A leitura do profeta Isaías nos faz relato de um caos primígeno, já transcrito no início do livro dos Gênesis, quando ainda nada tivera sido criado. O caos é uma não-vida, portanto, uma realidade tenebrosa, obscura. Com este pressuposto, a frase de Irineu que atribui a visão de Deus, isto é, a sua ação, à vida do homem, entrelaça-se com a primeira leitura e podem ser postas lado a lado. O pecado quebra a harmonia da criação e restabelece a realidade primitiva: quando a mão de Deus nada tivera criado havia somente o caos, o prenúncio da morte. Desta forma, somente se permanece alimentado pela esperança e pela certeza da ação de Deus, o homem pode passar da morte à vida, pode ser visão de Deus e pode ser glória para Deus.

No fim, podemos pensar que o próprio Filho de Deus entra na História humana de forma visível, subjuga-se ao tempo (Chronos) e às condições físicas do homem. Poderíamos perguntar-nos: Como receberíamos Jesus hoje? O que faríamos se Maria e José batessem hoje à nossa porta? Quando Deus quis entrar no tempo dos homens, os homens quiseram sair do seu tempo (Chronos) e do tempo da Graça (Kairós). Criaram, por conseguinte, subterfúgios e, como Adão, esconderam Dele o seu rosto. É certo que a glória de Deus em sua totalidade só poderá ser contemplada quando estivermos purificados de todas as nossas faltas e participarmos do convívio dos eleitos. Mas Deus nos permite, pelo nascimento de Seu Filho, contemplarmos de antemão a prefiguração do Seu poder e da sua glória.

O Evangelho nos relata o cenário que Maria e José encontraram na fria noite em Belém. Mais do que hospedarias fechadas para um pobre casal, os corações encontravam-se cerrados no comodismo e no egocentrismo. Quem está fechado em si não se dá conta de que Deus mesmo está a bater à sua porta e que pede espaço e abrigo. Bateu outrora nas hospedarias em Belém e não encontrou lugar. Bate também hoje e não encontra espaço porque estamos atarefados com coisas pretensamente “importantes”. O tempo para Deus parece tornar-se cada vez mais escasso e disputado com o ativismo das tarefas diárias. A ausência de lugar para o Menino foi aprofundada e aludida na sua essência pelo evangelista João ao escrever: “Veio para o que era Seu, e os Seus não O acolheram” (Jo 1, 11).

Peçamos que o Senhor nos conceda um coração aberto a acolhê-Lo. Peçamos que o nome de Deus seja solevado e a salvação entre em nossos lares por meio d’Aquele que hoje pede o nosso amor, a nossa atenção e os nossos cuidados. Faze que reine a Paz como promessa do Teu Reino ao reconhecermos que sem Vós toda paz é utópica e toda ideologia é falha. Que a Tua Luz nos conduza à Belém para também nós adorarmos o mistério que ali se fez alcançar. Amém!

Cardeal Burke: A “plenitude do poder” não é poder absoluto

P: Muitas pessoas temem que finalmente o Sínodo utilizará uma linguagem dupla. Certas razões “pastorais” são usadas para mudar de fato a doutrina. Tais temores são justificados? 

R: Sim, são. Com efeito, um dos argumentos mais insidiosos utilizados no Sínodo a fim de promover práticas contrárias à doutrina da Fé é esta aqui: “não tocamos na doutrina, cremos no matrimônio com a Igreja sempre acreditou; realizamos apenas mudanças na disciplina”. Todavia, na Igreja católica isso nunca pode existir, pois, na Igreja católica, a disciplina está sempre ligada diretamente ao ensinamento. Em outras palavras: a disciplina está a serviço da verdade da Fé, da vida em geral na Igreja católica. Logo, você não pode dizer que você muda a disciplina e que isso não tem efeitos sobre a doutrina que ela protege, salvaguarda ou promove.

P: Devemos sempre acreditar que a Bíblia é a autoridade suprema na Igreja e que ela não pode ser manipulada, nem mesmo pelo Papa e os bispos?

R: Absolutamente. A palavra de Jesus é a verdade à qual somos chamados a obedecer e, por primeiro, à qual o Santo Padre deve obedecer. Durante o Sínodo, às vezes foram feitas referências à plenitude do poder do Santo Padre, dando a impressão de que o Santo Padre poderia até, por exemplo, dissolver um casamento válido que foi consumado. E isso não é verdade. A “plenitude do poder” não é poder absoluto. É a “plenitude do poder” de fazer o que Cristo nos pede para fazer, em obediência a Ele. Portanto seguimos Nosso Senhor Jesus Cristo, a começar pelo Santo Padre.

P: Um arcebispo disse recentemente: “Evidentemente seguimos a doutrina da Igreja sobre a família”. E acrescentou: “até que o Papa decida de modo diferente”. O Papa tem o poder de mudar a doutrina?

R: Não, é impossível. Sabemos o que o ensino da Igreja sempre foi. Ele foi expresso, por exemplo, pelo Papa Pio XI, em sua carta encíclica Casti connubii. Ele foi expresso pelo Papa Paulo VI na Humanae vitae. Ele foi expresso de um modo magnífico pelo Papa São João Paulo II na Familiaris Consortio. O ensinamento é imutável. O Santo Padre atribui a função de manter esse ensinamento e apresentá-lo com novidade e frescor, mas não mudá-lo.

(Excerto da entrevista do Cardeal Burke ao LifeNews)