Acreditar no que se quer ou no que se deve?

Ninguém pode voltar-se para Deus e para o mundanismo ao mesmo tempo.

O ardoroso empenho para o renovamento da Fé na Igreja e nos corações é como chama crepitante que procura iluminar as nações, mesmo aquelas mais distantes, e aproxima-se dos corações, mesmo os mais gélidos. Luz e trevas parecem pairar sobre o nosso mundo hodierno. De um lado uma realidade sombria, que nos cerca pelos crimes atrozes vaticinados contra a vida do homem e sua dignidade; de outro lado temos a luz, daqueles que, conscientes da sua missão, testemunham de forma clarividente o exercício da fé cristã, conformando-se ao que dissera Cristo aos apóstolos: “Vós sois o sal da terra… vós sois a luz do mundo” (Mt 5, 13.14).

Sois sal; sois luz! Pois quisera, Senhor, que todas as pessoas – ao menos aquelas que se comprometeram convosco – fossem sal; quisera que aquelas que dizem Vos ouvir e enchem vosso templo fossem luz. Mas assim não é!

Fosse o mundo mais fiel, que digno de fé; mais amante, que amado; mais humilde, que soberbo. E muitos corações, ainda assim, preferem as glórias do mundo, que são vãs e passageiras, que as glórias eternas e alegres de Deus. A sociedade, com seu rápido avanço tecnológico, está mais centrada em saciar seus bolsos de dinheiro do que saciar seus corações áridos de palavra e amor. Mundo injusto, cruel, cego… Até quando vereis apenas o que quereis, mas não o que deveis? Serás salvo pelo que queres ver ou pelo que ignoras? Dizem os muitos teólogos que o oitavo sacramento é o da ignorância. Como? Sim, e assim quisera Deus que o fosse para cumprir o seu projeto salvífico de salvar o maior número que almas. Esta ignorância, entretanto, distingue-se daquela outra que não edifica, mas destrói. Há, pois, dois tipos de ignorância: A dos que não conhecem porque não querem e a dos que não conhecem porque não podem.

Quanto a primeira está dito no livro da Sabedoria: “Postea non suffecit errasse eos circa Dei scientiam, sed et in magno viventes inscientiae bello, tot et tam magna mala pacem appellant – Como se não bastasse terem errado acerca do conhecimento de Deus, embora passando a vida numa longa luta de ignorância, eles dão o nome de paz a um estado tão infeliz” (14,22). Infeliz do homem que conhece e insiste em viver uma falsa paz, forjada num lapso de felicidade e numa lacuna existencial. O Cristianismo não deve coadunar com essa pacificidade contraditória que subsista na infelicidade do homem, em sua autodestruição, na perfídia do mal que avantaja sobre os pressupostos existências daquela Paz verdadeira, que Cristo porta à humanidade. E aqui cabe à Igreja exortar para que não se enveredem em caminhos tortuosos senão naquela via verdadeira de salvação que consiste no Evangelho.

O grande problema dessa crise existencial dá-se sobretudo por aquilo que foi chamado pelo então Cardeal Ratzinger como “ditadura do relativismo”, o que pretendo tratar num próximo artigo, atendo-me aqui àquilo que foi proposto em nosso tema. Em quem devemos acreditar ou no que acreditar? Naquilo que consiste em uma realidade visível e agradável aos nossos olhos ou naquela em que somos movidos pela fé, pelo ímpeto que nos leva a conhecermos as razões pelas quais cremos? Para isso devemos nos deter agora na segunda ignorância.

Esta consiste naquela que adverte o livro de Eclesiásticos e que é o “oitavo sacramento”, como comumente costuma-se dizer: “Qui prius fui blasphemus et persecutor et contumeliosus; sed misericordiam consecutus sum, quia ignorans feci in incredulitate – a mim que outrora era blasfemo, perseguidor e injuriador. Mas alcancei misericórdia, porque ainda não tinha recebido a fé e o fazia por ignorância” (I Tm 1,13).

A advertência do Apóstolo São Paulo vale também para os tantos a quem o Evangelho permanece ainda anônimo. Sabemos que a estes, não por culpa própria, mas por infortúnio, o evangelho é ainda um enigma a ser desvendado, e, portanto, não o amam e não o testemunham. Esses são aqueles para os quais a Igreja não desvia os olhos misericordiosos, sendo-lhes imputadas as palavras da Lumen Gentium:

“Com efeito, aqueles que, ignorando sem culpa o Evangelho de Cristo, e a Sua Igreja, procuram, contudo, a Deus com coração sincero, e se esforçam, sob o influxo da graça, por cumprir a Sua vontade, manifestada pelo ditame da consciência, também eles podem alcançar a salvação eterna. Nem a divina Providência nega os auxílios necessários à salvação àqueles que, sem culpa, não chegaram ainda ao conhecimento explícito de Deus e se esforçam, não sem o auxílio da graça, por levar uma vida recta. Tudo o que de bom e verdadeiro neles há, é considerado pela Igreja como preparação para receberem o Evangelho, dado por Aquele que ilumina todos os homens, para que possuam finalmente a vida. Mas, muitas vezes, os homens, enganados pelo demónio, desorientam-se em seus pensamentos e trocam a verdade de Deus pela mentira, servindo a criatura de preferência ao Criador (cfr. Rom. 1,21 e 25), ou então, vivendo e morrendo sem Deus neste mundo, se expõem à desesperação final” (n. 16).

Aos seus filhos a Igreja dirige o solícito apelo para que não se cansem de propagar, com a própria vida, o Reino vindouro que prefigura-se na Igreja e concretiza-se no advento definitivo do Senhor, fazendo com que milhares possam gradativamente aderirem ao Reino de amor e paz, edificado sobre a justiça e a verdade.

Estar “com” Deus e estar “em” Deus: A problemática do ativismo vazio

marta-e-mariaNo Evangelho deste domingo vemos tecida uma bela advertência do evangelista contra o perigo do ativismo e do esvaziamento de Deus da vida do homem. As figuras de Marta e Maria nos mostram a contraposição entre as duas realidades pelas quais o ser humano é chamado a reavaliar sua caminhada de vida e a caracterizar o motivo imprescindível da sua fé: a escuta atenta da Palavra.

            Com a vicissitude dos séculos, o mundo foi ganhando mecanismos que contribuíram progressivamente para uma destruição do silêncio e para a balburdia externa, lançando-se às pressões midiáticas que fazem com que o homem sinta-se cada vez mais intimidado pelas demasiadas vozes e intimide-se a lançar-se novamente na graça do silêncio. Por isso, para fazer com que ele tivesse ojeriza a estar só consigo e confrontar o seu eu – etapa imprescindível para a maturação de si e para a sadia convivência com os demais – a hodierna sociedade pôs-se a apresentar o silêncio como algo rejeitável e deplorável, pelo qual só se obtém solidão e tristeza, esquecendo-se – ou ainda mais: fazendo uso de uma má-fé – de que a voz de Deus não se encontra em seu falatório, em suas ideologias, em seu clamor destrutivo, mas só pode ouvi-Lo no silêncio, no coração que retira-se da exterioridade e coloca-se na interioridade; no homem que repousa o seu coração no Coração de Deus.

            O Santo Padre Bento XVI, ainda quando Pontífice titular da Santa Igreja, advertiu-nos por diversas vezes contra a prática dos feitos sem Deus. Numa delas, o Papa nos alerta:

Não devemos nos perder no ativismo puro, mas sempre deixarmo-nos penetrar na nossa atividade à luz da Palavra de Deus e assim aprender a verdadeira caridade, o verdadeiro serviço pelo outro, que não tem necessidade de tantas coisas – tem necessidade certamente das coisas necessárias – mas tem necessidade sobretudo do afeto do nosso coração, da luz de Deus.

            De fato, todos aqueles que perdem-se nos diversos afazeres mas não se detém na Palavra de Deus, não sentam aos pés do Mestre para escutá-Lo, são como a figura de Marta, que deixa-se levar pelo ativismo dos afazeres caseiros. As duas acolhem Jesus, no entanto cada uma com uma atitude diferente, sendo que a de Maria era a atitude primeira do discipulado: escutar, para partindo daí chegar-se à atitude de Marta: servir. A escuta atenta, portanto, precede o serviço, que torna-se vazio e supérfluo se não for acompanhado daquela disposição de guardar o silêncio para mais atentamente ouvir a voz do Senhor que fala.

         A ênfase dada pelo evangelista à atitude de Maria não diminui o gesto de disponibilidade de Marta, sempre atenta às necessidades do Senhor. A palavra de Cristo é clarividente: Nem desprezo pela vida de atividades, de serviço, nem tampouco um desprezo à hospitalidade tão calorosa; mas a advertência é para que nada se sobreponha a Palavra de Deus. Tudo se esvai, tudo se consome, finda a própria vida do homem; seus bens serão corroídos pela traça, sua carne nada mais ficará senão pó, mas o Evangelho permanece vivo em seu coração, em sua alma e no coração da humanidade.

             O ativismo nos confronta ainda com uma realidade crucial na vida do cristão: Estar com Deus e o estar em Deus. Não é tão somente uma questão pragmática o que aqui tratamos, mas sobretudo uma metanóia da interioridade. Há uma diferença entre aquele que está com e o que está em, isto porque quem está com pode estar tão somente acompanhado ou acompanhando, está ao lado, mas se vem a adversidade e a tribulação pode opor-se, oferecer resistência, duvidar, divergir, desacreditar… Quem está em torna-se apenas um, daí que Paulo não viva “com”, mas “em Cristo” (cf. Gl 2,20). Quem vive em não foge, não teme, não desacredita, não resiste, não diverge, não destrói-se, mas está refugiado sob Aquele que o protege, orienta e oferece todas as condições necessárias para um encontro consigo no gesto sempre atento da escuta.

            Somos, pois, chamados a não nos persuadimos por vozes que bradam coniventes com o erro, a miséria e a desmoralização do ser humano, oferecendo-lhe um viés de degradação, enveredando-se pelos caminhos perdidos da aridez espiritual. Sejamos autênticos cristãos, que firmam-se na convicção da fé, na certeza da eternidade, na esperança do encontro com Cristo. Vençamos as vozes que tentam fazer sucumbir o clamor incessante que brada a dois mil anos: “Uma só coisa é necessária” (Lc 10,42). Não nos ab-roguemos da prática incessante do bem, mas para que essa prática seja leal ao projeto salvífico do Redentor, saibamos primeiramente escutá-Lo como fizera Maria.

         “Tendo nossos lombos cingidos, portanto, com a fé e a realização de boas obras (Ef 6,14), vamos andar em Seus caminhos, a orientação do Evangelho, para que possamos merecer ver aquele que nos chamou para o seu reino (1 Ts. 2,12)”. (Regra do Nosso Pai São Bento, 21).

O amor de Deus: fundamento da Religião

“Antigamente convertia-se o mundo, hoje por que se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obras são tiros sem bala; atroam, mas não ferem (Pe. Antônio Vieira, Sermão da Sexagésima).

Após um longo período afastado por algumas razões de saúde e demais motivos superiores, hoje relendo o Sermão do Pe. Antônio Vieira, um dos  que mais me agradam nas obras e em todo o suporte retórico e teológico-espiritual que ele nos oferece, resolvi dedicar-me a este artigo, sobre o qual apenas pensei no papel da religião na nossa sociedade. É este um verdadeiro clamor às religiões e aos cristãos; um clamor que brota, mais do que nunca, diríamos, das entranhas do Espírito Santo. Ao chegarmos à conclusão do Tempo Pascal com a Solenidade da Ascensão do Senhor e de Pentecostes, somos impelidos por estas palavras que tocam o âmago da nossa fé e da nossa concepção de Cristianismo e de vivência cristã.

 Desta feita, torna-se necessária hoje uma tríplice pergunta: O que é a fé cristã? Como exercitá-la no mundo? Como transmiti-la aos demais? Tais indagações fazem-nos refletir e adequarmo-nos a uma realidade sempre pertinente e à qual nunca me canso de chamar a atenção: a configuração total a Cristo por meio do Evangelho, de uma autêntica vivência da Fé. Não podemos nos cansar de ser cristãos; não podemos brincar com o Evangelho; não podemos adequar o Evangelho a nós – triste realidade do mundo hodierno. Ou somos destemidos ou somos covardes; ou somos audazes ou somos retraídos; ou somos cristãos ou não o somos, mas não podemos fazer meio termo da Palavra de Deus, pois Deus não faz meio termo do gênero humano.

Diz-nos a Escritura: “Nem quente, nem frio, mas porque és morno vomitar-te-ei da minha boca” (Ap 3,16). Palavras duras, mas verdadeiras. Deve haver uma contrapartida entre o homem e Deus, uma reciprocidade. Deus não é interesseiro, mas a questão aqui é de um reconhecimento da nossa parte. Aquele que é Senhor de tudo, doador de todas as graças, quer depender do nosso amor, quer de nós apenas isso: que O amemos. E só desta forma pode o homem senti-lO: pelo amor. A religião (re-ligare = religar) deve ser a propiciadora deste encontro, aquela ponte que une o homem a Deus e jamais deve ser muro que separa, desvirtuando-se, assim, não apenas da sua nomenclatura, mas da sua missão primeira.

Pregar sobre Deus, anunciá-lO, mostrar o Seu amor ao mundo, esse é o dever da religião. Quando a religião deixa de pregar sobre Deus e o seu Evangelho e passa a ser transmissora de suas convicções institucionais ou de convicções pessoais de seus membros, deixa de ser semente de Deus e passa a ser joio do Diabo. Se queremos que o mundo olhe para a Igreja, contemple o crucificado, adore o Senhor morto e ressuscitado, não podemos fazê-lo apenas por palavras e por belas retóricas – como recordara Pe. Vieira –, devemos antes de tudo dar testemunho. Coloquemos Deus novamente no centro da religião e de nossas vidas. Quando retiramos Deus dos horizontes da sociedade, tendemos a mostrá-los apenas horizontes de morte, desfigurados pela falta de amor e de misericórdia, pela falta de fraternidade e de humildade.

Antes de proferirmos belas palavras dos púlpitos, batamos no peito e reconheçamos as nossas misérias e peçamos perdão por nossos pecados; depois poderemos anunciar aos outros aquilo que escrevemos primeiramente para cada um de nós, pois enquanto não ponderarmos nossas ações e buscarmos autenticidade nelas, não passaremos de meros semeadores de confusão daquilo que falamos mas não fazemos, denunciamos mas não corrigimos, proclamamos mas não escutamos.

Na Solenidade da Ascensão do Senhor sejamos como os Apóstolos, testemunhas destemidas do mandato de Jesus. Que o nosso medo não resvale na nossa boa audácia de discípulos e que a nossa fé não sucumba nas adversidades.

“Tu és meu filho e hoje te gerei”: Solenidade do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo

Após o ciclo de quatro semanas propostas pela Igreja no tempo do Advento, celebramos hoje a Solenidade que faz maravilhar nossos corações: o Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo. Deus entra no espaço e no tempo dos homens. Fá-lo para realizar plenamente a salvação daqueles que estavam carregados com o julgo do pecado.

Apparuit enim gratia Dei salutaris omnibus hominibus – Manifestou-se a graça salvadora de Deus a todos os homens” (Tt 2, 11). Esta é a festa da gloriosa manifestação da graça santificante. Somos envoltos na luz da misericórdia e do amor de Deus, um Deus que faz-se um de nós assumindo o rebaixamento da nossa condição humana. Esse amor não aparece, mas manifesta-se. Manifesta-se, pois já existia, e porque já existia manifestou-se. Mas que coisa é para nós hoje esta manifestação? O que ela representa aos nossos dias atribulados pela valorização de coisas efêmeras, de guerras, de ódios, de divisões? Vemos com grande tristeza a perda dos valores natalinos. Enfeitamos as casas, os comércios, os, porém, corações continuam despreparados para acolher o Menino Deus que vem para libertar-nos do pecado. Os símbolos natalinos perdem seu valor e em nada traduzem o espírito natalino quando são privados de exalar o perfume de Cristo. A Igreja não cessa de convidar os católicos para que, profundamente tomados pela força revigoradora do Cristo, possam manifestar ao mundo que o verdadeiro espírito do Natal não há de consistir apenas nos presentes, pois hoje nos é dado o maior presente; também não há de consistir apenas na árvore de Natal, pois os céus se abrem hoje para manifestar que a Árvore da Vida implanta-se no mundo para nos guiar até o céu.

A manifestação daquele recém-nascido envolto em panos é também o grito de tantas crianças colocadas à margem da sociedade e que nesta noite, tomadas pela escuridão e pelo frio que as cercam não estão incluídas em seios familiares. A elas também dirijo o meu pensamento e peço que não se sintam abandonadas, mas que sintam a presença do Menino Jesus que as ama e com elas permanece sempre.

O Senhor faz-se pequeno para que a o gênero humano pudesse ser engrandecido, e o homem, tomado em sua totalidade, visse a manifestação da glória de Deus, mas não somente a visse como também a experimentasse, tocasse, por assim dizer, pudesse fazer parte dela. Só desta forma os homens poderiam sentir-se abraçados pelo grande amor de Deus, por Aquele que, a princípio, por ser grande e estar infinitamente acima de nós parecia-nos distante e inalcançável.

Na manifestação humilde do Filho de Deus o mundo encontra uma resposta a todas as suas angústias, a todos as suas interrogações. Só Deus pode responder verdadeiramente aos anseios do homem e só d’Ele provém a felicidade eterna e verdadeira, que não se restringe a um instante mas é algo novo, diferente. A alegria que provém de Deus não muda somente o estado de espírito do ser humano; ela vai além: muda o modo de viver, muda o coração e também os objetivos que deseja alcançar. Esta, e só esta, é a felicidade divina.

Na sua maravilhosa obra Confissões, Santo Agostinho irá manifestar um triângulo de relacionamentos em um parágrafo que considero um dos mais belos. Diz ele: “Ó eterna verdade e verdadeira caridade e cara eternidade! Tu és o meu Deus, por ti suspiro dia e noite. Desde que te conheci, tu me elevaste para ver que quem eu via, era, e eu, que via, ainda não era. E reverberaste sobre a mesquinhez de minha pessoa, irradiando sobre mim com toda a força. E eu tremia de amor e de horror. Vi-me longe de ti, no país da dessemelhança, como que ouvindo tua voz lá do alto: ‘Eu sou o alimento dos grandes. Cresce e me comerás. Não me mudarás em ti como o alimento de teu corpo, mas tu te mudarás em mim’”.

São estas belíssimas palavras que nos levam a contemplar novamente esta novidade que vem do alto. Sim, Deus é uma verdade eterna, imutável. Em um mundo que necessita exercitar seu empirismo para acreditar, a Igreja nos exorta novamente a abandonarmos esta mentalidade. Busquemos Aquele pelo qual acreditamos não por vermos e necessitarmos tocar, mas acreditamos pelo Amor, um amor incondicional que instiga-nos a caminharmos em direção do próximo, do que necessita nosso amparo e nosso amor, dos que sofrem por não amarem. A estes o Senhor faz um convite incansável: Não temam em abrir-se para o amor! Não temam em abrir-se a Mim!

Se eterna é a verdade, a caridade há de ser, então, verdadeira. Só a verdade pode levar o homem a sair de si mesmo e com Cristo, humilhar-se, e em Cristo, ser unido a Ele sem jamais deixar-se atribular por qualquer pressão do mundo. Renuncieis a esta vida e tereis a vida eterna. Renunciai a vida eterna e nem mesmo esta vida tereis, pois não existe maior desgraça para o homem do que afastar-se de seu Criador e colocar-se na condição de um ser autossuficiente, senhor de si e de seus desejos, podemos confirmá-lo nos vários sistemas políticos de autoritarismo.

A união com Cristo, como lembrará o Santo Bispo ao final de sua colocação, não é algo que assemelhá-Lo-á a mim, mas eu assemelhar-me-ei a Ele. A iniciativa foi dada por Cristo: Ele veio ao nosso encontro; tomemos agora a iniciativa de irmos ao encontro d’Ele, de sairmos das trevas, de amá-lo sem reservas. Indubitavelmente a falta de amor no mundo é consequência da falta de Deus, não porque Ele tenha se afastado do mundo, mas o mundo afastou-se d’Ele.

“O povo, que andava na escuridão, viu uma grande luz; para os que habitavam nas sombras da morte, uma luz resplandeceu” (Is 9,1). Assim escutamos nesta noite santa por meio do Profeta Isaias. Também o mundo de hoje caminha em meio a uma forte escuridão. A cultura moderna está impregnada por “sombras da morte”. Nós parecemos não enxergar nenhum sinal que venha nos animar, parecemos atordoados pelas fadigas derivadas do peso que a sociedade impõe. Nosso Senhor, no entanto, sempre aparece como Aquele que conforta-nos e soluciona as nossas tribulações. Confiemos em Deus! Não perece quem confia em Deus, mas aquele que nele não põe sua esperança logo será abatido pelos ventos contrários. Em quem colocamos a nossa confiança? Em Deus ou no mundo? No bem ou no mal? No que fortalece ou no que atribula?

Dominus dixit ad me filius meus es tu ego hodie genui te – O Senhor me disse: Tu és meu filho e hoje te gerei” (Sl 2, 7). Essas palavras a Igreja canta no Introito da Santa Missa da Noite Santa de Natal. Sim, “gerado, não criado; consubstancial ao Pai”, assim professamos no símbolo de fé niceno-constantinopolitano. Gerado desde toda a eternidade, Jesus, cumprindo o salvífico desígnio do Pai, restaura a condição humana decaída pelo pecado, reata os laços do homem com Deus, cortados por Adão e Eva.

“Enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto, e Maria deu à luz o seu filho primogênito” (Lc 2, 6). Com esta frase, absolutamente sóbria, São Lucas narra o maravilhoso acontecimento que teve lugar na manjedoura. Mas que significado tem aqui o termo “primogênito”? Indicaria uma sucessão de filhos? A primogenitura, deste ponto de vista da Sagrada Escritura, na Antiga Aliança, não significa uma sucessão de filhos, mas é um título de honra. Jesus é sim o primogênito de Deus, de Maria e da História. Nele Deus concretiza o seu desígnio em relação a sua graça salvadora na humanidade. São Paulo usará desta palavra ao afirmar que Cristo é “o primogênito de toda a criatura” (Cl 1, 15). Sim, tendo cumprido a sua obra salvífica podemos afirmar que Ele torna-se também o primogênito de muitos irmãos. Maria, assim, poderíamos associar como mãe de muitos filhos. Aqui estão os outros filhos de Maria! Derivam da filiação adotiva, daquele que é Filho de Deus por excelência: Jesus Cristo.

“Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2, 7). Não havia lugar para o Senhor e para sua mãe naquela época. Também hoje muitos corações estão fechados à receptividade do Reino de Deus que vem na pessoa desta frágil criança. No frio daquela noite de Belém nasce Aquele que iria aquecer todos os corações com a chama do seu amor misericordioso. Pedimos que os corações sejam abertos a este menino salvador. Abram-se os corações e possam acolher aquele que a dois mil anos foi rejeitado.

Que lugar Jesus ocupa em nossos corações hoje? Esta pergunta deve fazer com que possamos melhor vivenciar o verdadeiro espírito natalino. Muitos corações estão endurecidos à mensagem que esta noite tem a transmitir-nos a Igreja. Enquanto a efemeridade e o secundário forem postos como necessários os homens não encontrarão a paz tão almejada. Não pode abrir-se ao mundo e aos irmãos quem antes não estiver aberto a Deus, quem não se tornar portador de sua Palavra e fizer de sua vida um Evangelho.

 “Naquela região havia pastores que passavam a noite nos campos, tomando conta do seu rebanho” (Lc 2, 8). Quem eram os pastores? Por que a eles o anúncio é dirigido primeiramente? Devemos dizer, em primeiro lugar, que eram pessoas humildes, tidas à margem da sociedade. Eram desconhecedores da Lei e, portanto, não a vivenciavam; andavam com suas ovelhas por diversos campos, inclusive campos pagãos. Por tudo isso, eram julgados pelos fariseus e considerados impuros e indignos de participar das cerimônias de culto.

Mas se por um lado lhes pesava o fardo da exclusão, por outro, todo este sacrifício deu-lhes uma consolação maior que qualquer outra: Contemplar a face do Salvador feito homem; contemplar um Deus que é tão pequeno, tão humilde, tão frágil e quis necessitar do nosso amor. Não há na mitologia grega e nos deuses romanos nenhum Deus que tenha se feito homem; mas há para nós, homens e mulheres, testemunhas do Evangelho. O nosso Deus não constitui parte de uma literatura mítica. Ele existe! Ele vive! E hoje Ele inclina-se dos altos céus não para condenar-nos, mas para nos mostrar quão grande é o seu amor; um amor capaz de doar-se, capaz de não apenas inclinar-se para olhar-nos, mas descer para estar conosco.

Precisamente esta impressão, pela qual hoje somos tomados, acometeu os pastores que contemplaram maravilhados o menino. Deixaram tudo, ao escutar o anúncio do anjo. Certamente houve um grande temor por parte deles, afinal não lhes era comum ver aquele personagem vindo do céu. O que os pastores nos ensinam? Esta resposta nos é dada pelo Papa Bento XVI: “Deles queremos aprender a não deixar-nos esmagar por todas as coisas urgentes da vida de cada dia. Deles queremos aprender a liberdade interior de colocar em segundo plano outras ocupações – por mais importantes que sejam – a fim de nos encaminharmos para Deus, a fim de O deixarmos entrar na nossa vida e no nosso tempo. O tempo empregue para Deus e, a partir d’Ele, para o próximo nunca é tempo perdido. É o tempo em que vivemos de verdade, em que vivemos o ser próprio de pessoas humanas” (Homilia do Natal do Senhor, 2009). Ademais ensinam-nos que só o amor pode nos dar coragem para vencer o medo. Só o amor nos dá coragem para seguir a Cristo. Quem tem uma fé fraca e deixa-se abalar pelas coisas do mundo ainda não está apto para tal seguimento. Por vezes há momentos de queda, mas a força que vem de Deus dá-nos a certeza de que não estamos abandonados. Deus está conosco!

Deixemos tudo, como fizeram os pastores. Coloquemo-nos a caminho de Belém e enquanto caminhamos, rezemos: Vem, ó Senhor! Toca os corações endurecidos; renova os nossos corações; dissipa o ódio e o mal da face da terra; reafirmai vossa primazia e poder sobre todos os homens e em todos os tempos. Renovai vosso ardente desejo de sermos Evangelhos vivos para os homens de nossos dias. Revigora o ânimo dos entristecidos; conforta os tristes; curai os enfermos; acolhei os abandonados. Tornai-nos corações vigilantes na expectativa de que, habitando Cristo em nossos corações, possamos abitar igualmente no coração amoroso d’Ele. Concede paz ao mundo dilacerado pela guerra, paz verdadeira e duradoura. Paz a todos os cristãos nos mais diversos países, perseguidos por causa do vosso nome. Livrai-nos da tentação de colocar-Vos em último lugar, mas que possais crescer enquanto nós, assim como João Batista, possamos diminuir.

A todos os meus votos de um Feliz e Santo Natal. Que a luz de Cristo resplandeça em vossos corações e em vossas famílias.

São Pedro e São Paulo: modelos de verdadeiro e real apostolado!

Desde as épocas remontas a Igreja celebra neste mesmo dia, 29 de junho, a Solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, colunas da Igreja que, por amor a Cristo, fizeram doação de sua própria vida em favor da expansão do Evangelho pelo mundo.

Também constitui o momento de renovarmos a nossa fé na Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica, e reafirmarmos nossa comunhão ao Santo Padre Bento XVI, cujo dia hoje celebramos, de modo particular nesta Solenidade que comemoramos o seu 60º aniversário de ordenação sacerdotal. Rendamos graças a Deus por sua vida de testemunho e serviço à Igreja e peçamos que, por muitos anos, ocupe a Cátedra de Pedro, com o seu belíssimo exemplo de apostolado e que possa percorrer o mundo anunciando o Evangelho com o espírito de São Paulo.

Hoje a Igreja retorna às suas origens e contempla estas tão excelsas personagens, procurando inserir seus exemplos em nossos dias tão conturbados por ideologias que, apesar de parecerem convincentes, boas e fáceis, se contrapõem ao Evangelho. Perturbados estão os nossos corações como outrora esteve o coração de São Pedro, mas ele não desanimou e, mesmo no cárcere, continuou a render louvor a Deus com toda a Igreja. Uma noite lhe apareceu o anjo do Senhor que lhe disse: “Levanta-te depressa!” (At 12, 7). E o anjo o libertou da cadeia sem que fosse visto pelos guardas. Maravilhosos prodígios realiza o Senhor por nós!. Realiza-o primeiramente em favor de Pedro e depois em favor de toda a Igreja.

A posição de estar em pé é muito significativa, como foi dito por nós em uma das reflexões passadas. Está em pé aquele que está pronto a servir, que é humilde, que caminha. Pedro levantou-se porque sentiu que a sua missão não findava ali, mas ainda deveria continuar, ele deveria ser um sinal luminoso para toda a Igreja que estava sacudida pelas perseguições e violentada pelos vários ventos de doutrinas. Hoje, como fizera o anjo a Pedro, ele quebra as correntes do pecado que aprisionam aos membros da Igreja, e também a estes encoraja para que possam erguer-se. Assim tomamos consciência de que, apesar das debilidades dos homens de hoje, que estão inseridos no Corpo místico de Cristo, a Igreja nunca poderá estar “presa” pelas investidas de Satanás que propõe derrubá-la.

Levante, ó Igreja! Aquilo que anuncias não é utópico, não está restrito a um passado distante. Aquilo que anuncias é o próprio Cristo, Senhor da vida, que impera sobre a morte e sobre todas as investidas malignas. Somos também constituídos de uma liberdade. Esta liberdade, porém, deve ser usada para nos aproximar de Deus e não para nos afastar d’Ele. São Pedro nos diz que a pior doença das almas é a ignorância. Mas que ignorância é esta? Como ela pode ser definida? Esta ignorância é a ausência de Deus da vida do homem, é o não conhecer a Deus. Só aquele que conhece a Deus possui a verdadeira sabedoria, e isto porque só em Deus reside a verdadeira sabedoria. Como dirá a Escritura: “O temor ao Senhor eis a sabedoria. Fugir do mal eis a inteligência” ( 28,28).Quem não O conhece não tem a vida eterna prometida por Jesus e destinada a todos aqueles que nele põem a sua confiança, exceto se esse não conhecer seja dado por uma falta de evangelização que, infelizmente, ainda não chegou a todo o mundo.

E é evidente que há duas formas de conhecer a Cristo: a primeira é a forma “superficial”, vista da multidão. Um olhar passageiro e distante, que é extrínseco e, por isso, incapaz de causar uma transformação no modo de agir de cada um. A segunda forma é mais intensa, é o olhar que modifica o íntimo, o olhar dos discípulos. Puderam compartilhar deste olhar a pecadora arrependida, Zaqueu, o ladrão que na cruz clama por perdão, o centurião que vai a Jesus para pedir por seu filho e o cobrador de impostos Levi, mas também tantos e tantos que foram modificados pelo olhar intrínseco dos que puderam conhecer a Cristo, e conhecer no sentido profundo e verdadeiro da palavra. Aquela pequena minoria é chamada a diferenciar-se de toda a multidão. E é verdadeiramente indiscutível e visível que os cristãos devem voltar às origens, devem apresentar-se ao mundo primeiro por suas ações, pelo testemunho que deve acompanhar a atividade eclesial.

Simão Pedro foi outro que pôde conhecer verdadeiramente a Cristo. E em dois momentos principais podemos ver esta manifestação: Em Cesaréia de Filipe e no mar de Tiberíades. Antes da sua morte Jesus institui Pedro como chefe da Sua Igreja; depois da morte Jesus confia a Pedro o pastoreio das ovelhas e confirma a missão que já lhe fora outorgada, pois só depois de Sua morte Jesus realmente solidifica as bases da sua Igreja, uma vez que fora comprada com o Seu sangue (cf. At 20, 28).

Gostaria de meditar sobre este primeiro momento que hoje nos narra o Evangelho. Pedro aqui é posto por Jesus como sinal de sustento para a Igreja e na frase dirigida a Jesus, após tê-los indagado sobre sua identidade, encontramos todo o lugar onde também está alicerçada a nossa profissão de fé: “Tu es Christus, Filius Dei vivi – Tu és Cristo, Filho de Deus vivo” (Mt 16, 16). E para nós, quem é Jesus Cristo? O que Ele significa para o nosso mundo que vive distante de Deus? O que Pedro professara é o ponto de discórdia para o mundo. Não se quer admitir que Jesus seja o Filho de Deus, e que Ele possa reivindicar para Si a adoração de Deus. Não se admite que Ele seja a salvação e um sinal de esperança para o mundo. Não se admite que Ele seja o ponto de partida e de chegada da humanidade.

A Pedro que iria negá-lo três vezes – e Jesus o sabia – Ele confia o mandato de governar a Igreja, de ser o primeiro Papa. Eis aqui um encontro misericordioso de Jesus com Pedro. Ele olha para Pedro, Pedro conhecia-o e sente este olhar quando se encontram em Tiberíades. “Tu és Pedro”. És Rocha, na qual o Senhor edifica a Sua Igreja, que é toda Santa. Mas quantas vezes desfiguramos a Igreja porque somos maculados pelo pecado?! Quantas vezes não nos submetemos a Deus para submetermo-nos ao mundo, porque parece difícil trilhar os caminhos da santidade? Pedro deixou o medo falar mais alto do que sua fé. Conosco, porém, o exemplo de Pedro e de tantos mártires deve nos precaver dessas tentações. Devemos temer o medo. Devemos manifestar ao mundo que o derramamento do sangue dos mártires não invoca divisão e de guerra, mas amor e uma verdadeira esperança. Ele relembra este sinal de união entre o céu e a terra, do qual Pedro é detentor das chaves.

Outro que experimenta o olhar misericordioso do Senhor é São Paulo. Ainda jovem Paulo via o olhar piedoso dos muitos cristãos que ele perseguiu, agora ele olha piedosamente para Jesus e sabe que tudo o que foi feito nele será consumado. Por isso, consciente do fim de sua missão, Paulo exclama:  “Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé” (2 Tm 4, 7). Guarda a fé aquele que antes no-la havia dado ao mundo, e a guarda não por viver de forma egoísta, mas porque vivenciou tudo aquilo que havia propagado, porque o que anunciou ao mundo, os sofrimentos que lista aos cristãos, ele já havia sentido em si.

São Paulo é para a Igreja espelho de sua ação missionária. A Igreja não é uma “porção” do povo que segue a uma ideologia, seja por atração ou por um bem estar, ao contrário: é o reflexo da viva e constante atuação de Cristo no mundo. É sustentada pelo Espírito Santo e a sua essência é a santidade! O apóstolo faz dessa atuação o sentido da sua vida. Na sua conversão ele encontra-se com o olhar misericordioso do Senhor, a partir daí sua vida já não era-lhe característica íntima mas pertencia a todos, sobretudo a Cristo, por isso exclama com tanta convicção: “É Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20). Esta frase expressa uma doação total nossa a Cristo; um doar-se sem reservas, sem esperar nada em benefício próprio. Ser cristão é amar e saber que muitas vezes seremos perseguidos e maltratados, e ainda assim continuaremos a amar. Isso Paulo fez e isso ele ensina-nos a fazermos.

Queremos rezar agora. Senhor, vos pedimos a graça de perseverarmos na unidade com o Sucessor de São Pedro, e o Colégio Apostólico. Não deixeis que a vossa Igreja seja maculada por divisões, mas que possa mostrar ao mundo que somente se estiver em Vós ela poderá permanecer unida em oração, como se encontraram a Santíssima Virgem Maria e os Apóstolos no Cenáculo. E erguemos uma prece incessante de agradecimento por estes modelos de vida que hoje celebramos, tão exemplares, pedindo “que a Igreja siga sempre o ensinamento dos Apóstolos dos quais recebeu o primeiro anúncio da fé” (Oração da Coleta).

Configurados a Cristo na Eucaristia

Caro cibus, sanguis potus/ manet tamen Christus totus sub utraque specie – O pão é a carne e o vinho é o sangue; todavia debaixo de cada uma das espécies Cristo está totalmente”. Eis como cantamos hoje na Sequência celebrando a Solenidade de Corpus Christi. A Igreja nos chama a adorar piedosamente a Eucaristia, que nos fortalece em nossa caminhada. Hoje somos convidados a olharmos para aquele dia em que Nosso Senhor, somente por amor, doa seu Corpo e Sangue pela nossa salvação. A celebração que hoje realizamos nos põe diante de um gesto presente, mas também escatológico. Primeiro reunimo-nos em volta do Senhor, comemos do seu corpo e bebemos do seu sangue; segundo é o gesto do caminhar, isto é, a procissão que tradicionalmente realizamos nos ensina que todos somos peregrinos para o Pai, que caminhamos para um encontro definitivo com Jesus Cristo e, por conseguinte, para a eterna felicidade; e em terceiro o gesto definitivo que é ajoelhar-se e adorar o Senhor, reconhecer a sua onipotência e agradecê-lo por se nos dar em alimento.

Neste dia a Igreja revive a Quinta-feira Santa, agora já à luz do mistério grandioso da Ressurreição. Na primeira leitura, retirada do Deuteronômio, faz-se memória da peregrinação do povo hebreu por quarenta anos, rumo a terra prometida, e lá se diz: “Ele te humilhou, fazendo-te passar fome e alimentando-te com o maná que nem tu nem teus pais conhecíeis, para te mostrar que nem só de pão vive o homem mas de toda a palavra que sai da boca do Senhor” (Dt 8, 3). Estas palavras são também dirigidas a nós, que fazemos parte de uma geração não mais confiante somente na palavra do Senhor, em sua paternal bondade e solicitude, mas, muito mais, por ela romper neste estreito vínculo com Deus e passar a gerar “falsas palavras”, que conseguem persuadir a tantos. Aquele maná, dado outrora aos hebreus, ganha mais tarde um novo significado, alcança, por assim dizer, a “plenitude” do termo em Jesus Cristo, pão eterno e verdadeiro dado a todos os homens. E por meio deste “dar-se” Ele plenifica e perpetua a sua estada em nosso meio.

Desta forma é rompida e suprimida a ausência deste espaço de tempo que nos separam de Cristo. Com essa perpétua estadia conosco Ele não retira-se do mundo, não está invisível, ausente, obscurecido pelo tempo. Também para o homem hodierno esta é uma esperança: Ainda que abandonemos a Deus Ele nunca nos abandonará. Ainda que d’Ele nos afastemos Ele sempre estará ao nosso lado! Por isso, tenhamos confiança! Quem confia no Senhor nunca será desamparado!

“Este é o pão que desceu do céu. Não é como aquele que os vossos pais comeram. Eles morreram. Aquele que come este pão viverá para sempre” (Jo 6, 58). Não basta comermos o Corpo do Senhor e permanecermos indiferentes à sua graça salvífica, é preciso aceitarmos ser transformados por Ele. É preciso carregar em nós Aquele que recebemos e demonstrá-Lo ao mundo.

Sobre este vínculo de unidade com o Senhor São Paulo nos diz na segunda leitura: “O cálice da bênção, o cálice que abençoamos, não é comunhão com o sangue de Cristo? E o pão que partimos, não é comunhão com o corpo de Cristo? Porque há um só pão, nós todos somos um só corpo, pois todos participamos desse único pão” (cf. 1 Cor 10, 16-17). Este é, sobretudo, um dos principais aspectos da Eucaristia: congregar a todos os povos diante de um único Senhor. Gostaria de dizer primeiramente que este aspecto é sinônimo de reconhecê-lo como verdadeiro Deus, de n’Ele encontrar a plena felicidade e o fundamento da esperança e do amor; caso contrário não é Deus. Quem se curva diante do dinheiro e dos prazeres terrenos fazendo-os centro de suas vida, não pode curvar-se diante de Deus. Depois: O verdadeiro Deus une a todos em seu amor, acolhe aos pecadores e ampara aos fracos, não faz distinção de ideias políticas, de nacionalidade, de profissão, mas une os homens em um único corpo: a Igreja, firmada em um único alicerce: o amor de Deus, partilhando um único Pão: Cristo.

Ademais, esta Solenidade é um momento sempre propício para nos alertar para a crescente tentação ao individualismo que sempre vem ganhando espaço na sociedade, e mesmo dentro da Igreja; esse constitui um desvio na estrada a caminho do Mestre, além de ser totalmente contrário ao que Ele ensinara. A Eucaristia é unidade, fraternidade, amor. Outro risco que corre-se, porém, é de generalizar tais palavras a ponto de chegar-se ao extremo de relacionar a Igreja com brigas políticas e sociais. “A Igreja, recordara muitas vezes o Beato João Paulo II, não é uma instituição democrática”, mas é “um projeto que nasceu no Coração do Pai” (Catecismo da Igreja Católica §759). Mediante isso, as vontades humanas não contam e não prevalecem, mas somente a divina.

São Leão Magno recorda que “a nossa participação no corpo e no sangue de Cristo não tende para se tornar senão o que recebemos” (Sermo 12, De Passione 3, 7, pl 54). Eis que recebendo Cristo, Pão vivo, também somos chamados a configurar-nos a Ele, a sermos testemunhas do Seu Reino hoje. Como bem dissera o Sumo Pontífice Bento XVI: “Todos podem se abrir à ação de Deus, ao seu amor; com o nosso testemunho evangélico, nós cristãos devemos ser uma mensagem viva, aliás, em muitos casos somos o único Evangelho que os homens de hoje ainda leem” (Homilia na Quarta-feira de Cinzas, 2011). Demonstrai, cristãos, ao mundo, que vós sois Evangelhos vivos e testemunhas verdadeiras! Que sejamos reconhecidos, antes de tudo, pelas nossas ações, imitadoras de Cristo, ainda que por vezes sejam falhas, mas que sejam imitadoras. Portemos a esperança ao mundo! Mas, mais ainda, portemos o mundo à Esperança verdadeira e perpétua.

“A Eucaristia é o alimento destinado àqueles que no Baptismo foram libertados da escravidão e se tornaram filhos; é o alimento que ampara no longo caminho do êxodo através do deserto da existência humana. Como o maná para o povo de Israel, assim para cada geração cristã a Eucaristia é alimento indispensável que ampara enquanto atravessa o deserto deste mundo, ressequido por sistemas ideológicos e econômicos que não promovem a vida, mas ao contrário a mortificam; um mundo no qual domina a lógica do poder e do ter em vez da do serviço e do amor; um mundo no qual com frequência triunfa a cultura da violência e da morte. Mas Jesus vem ao nosso encontro e infunde-nos segurança: Ele mesmo é ‘o pão da vida’ (Jo 6, 35.48)” (Bento XVI, Homilia de Corpus Christi 2007).

“Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo” (Jo 10, 21). Para muitos que ali se encontravam foram “duras” tais palavras. Deveras, a limitação da inteligência humana faz com que seja incapaz de entender os insondáveis mistérios da salvação. Para nós, porém, estas palavras portam esperança e vida, destinadas a toda a sociedade e confiada a todos os homens.

Invoquemos agora a Virgem Maria, “Mulher Eucarística”, como dissera o Papa João Paulo II, e peçamos que Ela seja nossa intercessora junto a Deus. Peçamos também que todo o mundo possa abrir-se a Cristo Eucarístico, que este possa produzir em nós os seus efeitos redentores. “Alimentai-nos e defendei-nos e fazei que mereçamos fruir da vossa glória na Terra dos vivos. Vós que tudo conheceis e tudo podeis fazer, e nos alimentais aqui, na Terra, da mortalidade, admiti-nos, Senhor, lá no Céu, à vossa mesa e dai-nos parte na herança e na companhia dos que moram na cidade santa. Amém. Aleluia” (Sequencia).

A Santíssima Trindade: Fonte de todo o Bem

Neste Domingo, terminado o Tempo Pascal e de volta ao Tempo Comum, celebramos a Solenidade da Santíssima Trindade. Manifesta-se, desta forma, a presença salvífica desta no mundo e, ao mesmo tempo, o consolo que traz à Igreja, e a nós seus membros, nas tribulações pelas quais passamos e haveremos de passar.

Na figura da Trindade contemplamos o perfeito exemplo de comunhão, uma demonstração de que somente quando se age em conjunto, com Deus e consigo mesmo, os homens podem alcançar a transcendência que almejam. A Comunidade perfeita nos impulsiona nesta busca e nos mostra que Deus não está distante, mas age por nós, conosco e em nós; e por meio deste “agir” os homens tornam-se verdadeiros imitadores de Cristo.

Na primeira leitura, hoje retirada do livro do Êxodo (cf. 34, 4b-6.8-90), Moisés clama ao Senhor: “Senhor, Senhor! Deus misericordioso e clemente, vagaroso na cólera, cheio de bondade e de fidelidade”. Este é o Deus que adoramos! Não é um Deus colérico, mas amoroso, que desceu das nuvens para comunicar-se conosco, que não escondeu sua face de misericórdia, mas mostrou-a ao mundo; um Deus que não permaneceu inacessível nas alturas, satisfeito com sua autossuficiência, mas quis estabelecer um diálogo conosco, quis fazer-se um de nós para que pudéssemos conhecer este outro nome que damo-lo: Amor. Deus é amor! O amor, sabemos, não conhece a ira e a desunião, não conhece o ser “inacessível”, mas está ao lado, fortalecendo, não deixando que desanimemos. O amor é reflexo da Trindade, que primeiro nos amou, e da qual não pode vir o mal, ele não é interesseiro e sim gratuito. Por isso, santo Agostinho dirá: “Vides Trinitatem, si charitatem vides – Vês a Trindade, se vês a Caridade” (De Trinitatem, VIII, 8, 12).

Hoje vê-se que os homens não mais buscam contemplar o rosto de Deus, não desejam serem reflexos de Deus, mas de si próprios. E é por causa desta divulgação egocêntrica da auto-imagem que a sociedade está desnorteada, perdendo a direção que deve seguir, perdendo Deus de vista. Se o caminho do homem não for Deus ele jamais poderá encontrar a felicidade eterna e jamais poderá ter esperanças. Se o caminho do homem não for Deus sua vida será em vão e os progressos, ditos em nome de um mundo melhor, serão armas de destruição. A Sagrada Escritura conhece apenas um Deus, o Deus de todos os povos, de Abraão de Isaac e de Jacó (cf. Ex 3,1). Mas quando o homem não caminha segundo as leis de Deus ele acaba por criar outros deuses, como fora feito na Mitologia grega. Deveras, lá encontramos deuses que agiam de forma correta ou ruim, que matavam, que torturavam…, etc. Nosso Deus, porém, é um Deus que ama, que acolhe, que perdoa, que é de todos e, acima de tudo, não é uma estória mas uma Pessoa que encarna-se e que passa a ser um de nós em Cristo, Aquele que é “imagem do Deus invisível” (Cl 1, 15). E isto Jesus diz no Evangelho: “Tanto Deus amou o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16).

Deus age na história! Esta ação singular não é individual, mas comunitária, que abrange todas as três Pessoas divinas: “O Pai cria todas as coisas por meio do Verbo, no Espírito Santo” (Santo Atanásio, Ep. 1 ad Serapionem, 28-30). Assim, a Teologia nos explica que ao falarmos de Deus não nos referimos apenas ao Pai, mas também ao Filho e ao Espírito Santo “que procede do Pai e do Filho” (Símbolo niceno-constantinopolitano).

Ele está próximo a nós! Para isso, no entanto, é necessário que nos abramos à sua graça redentora e salvífica; que deixemo-nos tocar por seu amor e que sejamos um com Ele.

É nesta “graça” que São Paulo reúne a comunidade de Corinto, é nesta graça que nós nos reunimos em cada celebração eucarística, quando o celebrante profere: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós” (2Cor 13, 13). É precisamente desta “Graça” que os povos sentem falta. E esta falta não é causada por uma ausência da graça no mundo, mas por uma ausência do mundo na graça. Nossa história deve estar firmada no nome de Deus. Só Deus pode solidificar as bases trêmulas de uma humanidade desumana, que dEle se afasta, que já não mais O faz centro, mas centraliza seus gostos. E esse perigo bate à nossa porta. Onde Deus deixa de ser o centro os caprichos e futilidades, a violência e a falta de fé, sufocam o homem e o atiram-no para um abismo criado por ele mesmo. A verdadeira autonomia do homem não está no achar-se superior a Deus, mas no inclinar-se perante Ele, no reconhecer a sua “essência” de filho e no estar aberto ao relacionamento com os irmãos.

Já na Sagrada Escritura vemos que Jesus revela aos discípulos o mistério da Trindade, que jamais pode ser compreendido pelos homens. Quando Filipe pede que Jesus mostrasse-lhes o Pai Ele responde: “A tanto tempo estou convosco e não me conheceis Filipe! Quem me viu, viu também o Pai. Não credes que estou no Pai, e que o Pai está em mim? As palavras que vos digo não as digo de mim mesmo; mas o Pai, que permanece em mim, é que realiza as suas próprias obras” (Jo 14, 9-10). Desta forma fica clara a pessoa de cada um, a essência igual de todos e a intrínseca união existente entre eles. São um! O pedido do discípulo não expressa a sua ignorância, mas a gritante necessidade que o mundo tem de ouvir essa resposta de Jesus.

Esse grito ecoa em todos os cantos da terra, mostrando que Igreja deve ser “espelho” da Trindade. “Numa sociedade tensa entre globalização e individualismo, a Igreja é chamada a oferecer o testemunho da koinonia, da comunhão. Esta realidade não vem ‘de baixo’, mas é um mistério que, por assim dizer, tem as ‘raízes no céu’: precisamente no Deus Uno e Trino. Ele, em si mesmo, é o eterno diálogo de amor que Jesus Cristo nos comunicou, entrando no tecido da humanidade e da história para levar à plenitude” (Homilia do Papa Bento XVI, 18 de maio de 2008).

Que Maria, Filha do Pai, Mãe do Filho e Esposa do Espírito Santo, interceda constantemente pela Igreja, para que seja sinal de unidade entre os povos

O Espírito Santo: vivificador da Igreja

Neste domingo, encerrando o Tempo Pascal, celebramos a solenidade de Pentecostes. Hoje o Espírito Santo, maior de todos os dons, é dado a Igreja. Hoje a Igreja primitiva nasce do alto e encoraja os Apóstolos, reunidos com Maria Santíssima no Cenáculo. Hoje manifesta-se a pluralidade e, ao mesmo tempo, a universalidade da Igreja em todos os cantos da terra, tendo como cabeça visível Pedro, e hoje o Sumo Pontífice.

Na primeira leitura – ouvimo-la dos Atos dos Apóstolos – é lido: “Quando chegou o dia de Pentecostes, os discípulos estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um barulho como se fosse uma forte ventania, que encheu a casa onde eles se encontravam… Moravam em Jerusalém judeus devotos, de todas as nações do mundo. Quando ouviram o barulho, juntou-se a multidão, e todos ficaram confusos, pois cada um ouvia os discípulos falar em sua própria língua” (At 2,1-6).

O dia de Pentecostes é um novo marco na história da salvação. Deus santifica a sua Igreja com o Espírito que a todos fortalece e alumia. Não mais as trevas! Não mais o erro! Não mais a violência e a laceração! Somente haverá de reinar agora a luz, a coragem, a sabedoria, o amor. E de onde emanam estes dons que nos afastam de uma realidade contrária a Cristo? De onde emanam estes dons que nos fazem brilhar como luzeiros para o mundo? Emanam daquele que dá-nos o conhecimento de toda a Verdade, isto é, do Paráclito (cf. Jo 16,13), só Ele e só nEle os homens podem encontrar a finalidade de sua existência e o sentido de suas vidas. Só Ele pode nortear os caminhos da humanidade sem que a mesma caia na perdição e esqueça o objetivo primeiro para que foi criada: manifestar a bondade do Criador e louvá-Lo pelos seus feitos.

Com esta leitura vemos a confirmação do Senhor para a atuação constante da Igreja na história da humanidade, e desta forma ela cumpre sua missão de fazer chegar a todos os povos o anúncio salvífico da ação de Cristo na história e da Sua Ressurreição. Do Cristo ressuscitado, e agora ao lado do Pai, emana uma força inédita e vivificante, uma força que impulsiona a Igreja a ser testemunha e a reconciliar os homens com Deus; uma força que é capaz de fazer com que os homens doem sua própria vida em confirmação àquilo que pregaram; acalma o que está turvo, purifica o que está impuro, acolhe o que está disperso; uma força que procede do Pai e do Filho; uma força que reúne o que está dividido.

Mas, cabe-nos perguntar, que unidade é essa? Como ela realiza-se? Deveras, esta unidade não pode jamais ser comparada a unidade de Estados e muito menos ela concretizar-se-á para fins políticos. Não é uma unidade que é resultante deste mundo finito, mas poderíamos dizer que é transcendente. Ela transcende as barreiras do tempo e dos lugares; sobrepõe-se a todos os confins políticos e a todos é dirigida.

Nos sermões de um anônimo autor africano encontramos uma colocação que reflete precisamente a missão do Espírito: “O amor haveria de reunir na Igreja de Deus todos os povos da terra. E como naquela ocasião um só homem, recebendo o Espírito Santo, podia falar em todas as línguas, também agora, uma só Igreja, reunida pelo Espírito Santo, se exprime em todas as línguas. Se por acaso alguém nos disser: ‘Recebeste o Espírito Santo; por que não falas em todas as línguas?` devemos responder: ‘Eu falo em todas as línguas. Porque sou membro do Corpo de Cristo, isto é, da sua Igreja, que se exprime em todas as línguas. Que outra coisa quis Deus significar pela presença do Espírito Santo, a não ser que sua Igreja haveria de falar em todas as línguas?” (Sermo 8,1-3: PL 65,743-744).

O Espírito Santo não conhece fronteiras! O Espírito Santo possui apenas uma linguagem: O amor; e é no amor que Ele reúne a todos. A primeira leitura, portanto, não manifesta somente a vinda do Paráclito, mas manifesta também que Ele fundou sua Igreja sobre as bases do amor, e fez deste a sua centralidade e o seu idioma. Assim, a Igreja é o contrário de Babel, quando todos os povos falavam uma só língua. Na Igreja falam-se várias línguas – como outrora fora em Pentecostes – mas todos podem entender como se fosse a sua própria língua. Unidade na diversidade, eis o retrato da Igreja.

Lucas observa que o Espírito veio sobre os Apóstolos e Maria, ou seja, veio sobre toda a comunidade ali reunida. Não veio apenas para Pedro, João ou Maria, mas para todos. É também possível vermos que os apóstolos pregaram a todos os povos que se encontravam em Jerusalém: Partos, medos, elamitas, mesopotâmicos, capadócios, pontos e asiáticos, frígios e panfílios, egípcios, líbios, romanos, judeus e prosélitos, cretenses e árabes. O evangelho é para todos! A salvação é para todos! Tantos povos demonstram que a Igreja é uma vasta comunidade e aqueles que nela encontram-se devem demonstrar o espírito de fraternidade, comum a todo cristão. Os discípulos recebem a visita de Jesus de forma inusitada. Com as portas fechadas Ele entra, e estavam as portas fechadas por medo dos judeus. (cf. Jo 20, 19). O Espírito mostra aos apóstolos que eles deveriam enfrentar o vasto campo de missão. Não poderiam eles reter o Evangelho a si e colocarem-se em atitude cômoda. Deveriam vencer o medo e não serem vencidos por ele. Ao doar o Espírito Santo o Senhor abre as portas ao mundo, que outrora foram fechadas. Como Sócrates pensava que o filósofo é alguém que incomoda também o cristão deve incomodar, um incômodo que toque a outros, que converta, que seja sinal concreto de que o que realmente pregamos é o evangelho. A unidade e a coragem tornam-se, então, sinais da presença do Espírito Santo, e quem se fecha em seu mundo, ignorando as necessidades do próximo, demonstra que afastou-se dEle.

O vento impetuoso enche a casa onde se encontravam os discípulos. Hoje, também nós, invocamos este mesmo preenchimento para a Igreja e para nosso interior. Que o Espírito, que é sempre novo, possa renovar o ar que respiramos, revigorando-nos e dando-nos um renovado espírito de caridade. Que a Igreja seja revigorada pelo sopro do vento que a reanima e a faz capaz de continuar testemunhando o Evangelho mediante a hodierna sociedade. Que possamos respirar novos ares em tempos tão conturbados, onde a Igreja é lançada de um lado a outro em alto mar.

Nesta perspectiva de receber novos ares, Jesus sopra sobre os apóstolos o ar da vida que dele procede: “Recebei o Espírito Santo” (Jo 20, 22). Vem Ele acompanhado da paz, não qualquer paz. Para que pudessem conceder a paz aos outros, primeiro os discípulos receberam-na de Cristo, pois esta paz é aquela que só Cristo, por meio do Seu Espírito, pode conceder. Uma paz que também é transcendente, que é dom para a vida eterna, comprada com o Seu sangue. A Igreja é a primeira a fazer com que essa paz chegue a todos os povos, e ela nunca pode esquivar-se desta sua missão.

Hoje queremos invocar a intercessão de Maria Santíssima, pois se “não há Igreja sem Pentecostes…  não há Pentecostes sem a Virgem Maria” (Bento XVI, Regina Coeli, 23 de maio de 2010), Façamos da Igreja um novo cenáculo, repetindo o incessante clamor: “Domine, emitte spiritum tuum et renova faciem terrae – Enviai o vosso Espírito Senhor, e renovai a face da terra”.

Elevados com Cristo a uma vida nova

“Ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia, na Samaria e até aos confins do mundo” (Act 1, 8). Com estas palavras, na primeira leitura, o Senhor Jesus despede os discípulos antes de ascender gloriosamente aos céus. Imediatamente acrescenta São Lucas que “se elevou à vista deles e uma nuvem subtraiu-o a seus olhos” (Act 1, 9).

Celebramos hoje a Solenidade da Ascensão do Senhor. Este é o último ato terreno de Jesus após sua ressurreição. Ele é elevado ao alto pelo poder de Deus e desta forma é introduzido no espaço da proximidade divina. Mas estas palavras de Cristo são também uma exortação veemente da nossa responsabilidade cristã que, com a vicissitude dos tempos, não é menos importante. Analisemos a nossa sociedade, por exemplo, tomada por ideologias anti-cristãs, por leis que tendem a afastar os homens de Deus e a criar isolamentos, sobretudo com a falta de comunhão entre os povos. Mediante este cenário as palavras de Jesus ganham maior intensidade e nos mostram que ser cristão não é apenas ser batizado e dizer-se um, mas é, no batismo, dar testemunho do que propôs-se a viver.

Agora, caberia perguntar-nos o que transmite-nos hoje esta Solenidade? Qual a mensagem que ela vem trazer ao nosso mundo frenético e sem tempo para Deus? Esta mensagem é sempre nova e quer introduzir-nos também neste “novo”. “Na Ascensão de Cristo ao Céu, o ser humano entra numa nova intimidade com Deus, sem precedentes. O homem encontra agora, e para sempre, espaço em Deus. O ‘Céu’ não é um lugar sobre as estrelas, mais uma coisa muito mais ousada e sublime: é o próprio Cristo, a Pessoa divina que acolhe plenamente e para sempre a humanidade, Aquele no qual Deus e o homem estão inseparavelmente unidos para sempre” (Papa Bento XVI, Homilia em Cassino, 24 de maio de 2009).

Daí cria-se a certeza de que, se outrora descera o Senhor à humanidade para humanizar-se, agora, com sua subida, Ele a santifica e, desta forma, rompe o abismo máximo que afastava o homem de Deus. Sobe o Senhor aos céus, e com Ele é necessário que subam nossas almas, purificadas de todo o pecado pelo seu Sangue, e fortalecidas pelo mistério salvífico do Ressuscitado, que vence a morte e dá aos homens uma vida fortalecida pelo Seu Amor, que, deveras, só deseja em troca o nosso amor.

Na segunda leitura, o autor sagrado escreve: Ele manifestou sua força em Cristo, quando o ressuscitou dos mortos e o fez sentar-se à sua direita nos céus, bem acima de toda a autoridade, poder, potência, soberania, ou qualquer título que se possa mencionar, não somente neste mundo, mas ainda no mundo futuro. Sim, ele pôs tudo sob seus pés e fez dele, que está acima de tudo, a Cabeça da Igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que possui a plenitude universal” (Ef 1, 20-23).

Deus sujeita tudo a Cristo; Ele submete tudo ao Seu Poder. Mas esta submissão não é autoritária e tirana, que priva o homem de sua liberdade. Ela está muito acima disso. É a submissão do amor e da liberdade, do respeito e da tolerância. Por isso, digo: quem teme a Cristo por medo do inferno e não por amor, não o teme verdadeiramente, mas vive em uma constante incerteza. É a certeza de que Cristo está conosco que fortalece a nossa fé e nos faz amá-lo cada dia mais. “Cristo está no céu, mas também está conosco; e nós, permanecendo na Terra, estamos também com ele. Por sua divindade, por seu poder e por seu amor ele está conosco; nós, embora não possamos realizar isso pela divindade, como ele, ao menos podemos realizar pelo amor que temos para com ele” (Sermo de Ascensione Domini, Mai 98,1-2; PLS 2,494-495).

Uma vez que Cristo sobe à glória do Pai, a Igreja também encontra na promessa do Senhor este mesmo destino: contemplar a face de Deus, e ser elevada à Sua glória. Ela não anuncia um Deus desconhecido e distante, mas anuncia um Deus próximo, feito homem, que quis tornar-se nosso amigo e quis padecer para redimir-nos dos nossos pecados; um Deus que desce aos abismos humanos, à miséria humana, e fazendo-o torna-nos capazes de podermos chamar a Deus de Pai.

O evangelho narra que “quando viram Jesus, prostraram-se diante dele. Ainda assim alguns duvidaram” (Mt 28, 17). A dúvida sempre fez-se presente nos homens, sobretudo pela sua capacidade de incredulidade. Também naquele momento alguns duvidaram que Jesus realmente estivesse ali, que fosse Ele. No entanto, Ele não exclui a esses, não os põe à margem dos escolhidos, mas os confirma e os faz missionários: “Ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei! Eis que estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 19-20).

Esta é a promessa confortadora que o Senhor nos dá: Estarei convosco. E para aqueles que duvidaram esta é a maior prova da presença do Senhor. “Pode o mundo vos abandonar e perseguir, deixando-os sozinhos, mas Eu estarei ao vosso lado”, nos diz Cristo todos os dias. E aí verão os incrédulos que, aquele que os falava, não era um fantasma, mas o Senhor que torna-se sustento para os caminhos do mundo que temos que enfrentar.

Que Maria, Mãe de Deus e nossa, interceda em nossa caminhada para que jamais possamos desanimar.

O amor põe-se a serviço

Hoje damos início ao Tríduo Pascal com a Santa Missa In Coena Domini, isto é, na Ceia do Senhor. Neste dia, os homens são chamados a identificar na cena evangélica o amor máximo que moveu os angustiados corações dos apóstolos, que dentro em breve já não mais teriam o Senhor entre eles. Quinta-feira Santa: dia em que manifestar-se-nos-á a maior prova de humildade que o Senhor transmitiu-nos. O Messias inclina-se perante os apóstolos e lava-lhes os pés e depois enxuga-os. O nosso Pontífice recordar-nos-á que “a subida para Deus acontece precisamente na descida ao serviço humilde, a descida ao amor, que é a essência de Deus e, portanto, a verdadeira força purificadora, que capacita o homem para conhecer Deus e vê-lo” (Bento XVI, Jesus de Nazaré, pag. 95, Edit Planeta). Sabendo que deveria voltar para o Pai, como nos relata o Evangelho de hoje (Jo 13, 1), ascender ao Céu, o Senhor desce, inclina-se, lavando os pés dos discípulos, e desta forma – assim querendo – Ele pode voltar ao Pai.

Diz-nos o Evangelista São João que Jesus estava ciente do que iria acontecer: “Sciens Jesus quis venit hora ejus ut transeat ex hoc mundo ad Patrem, cum dilexisset suos qui erat in mundo, in finem dilexit eos – Sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo ao Pai, como tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo, 13, 1). As palavras “até o fim”, para alguns comentaristas e exegetas, seria dizer que Jesus os amou até o momento da morte. Esta definição, no entanto, parece-me incompleta, pois, mais que na morte, o Senhor os amou na Ressurreição e os amará por todo o sempre. Também não nos disse o evangelista que amou mais, senão que na mesma proporção de como já os amava desde a sua encarnação e durante todos os dias de sua vida. Nunca Cristo amou mais nem menos.

De Deus veio e para Deus voltaria, assim Jesus o sabia. Para mostrar que o serviço, como o amor, deve estar arraigado no homem, em sua essência, faz com que seus apóstolos pudessem notá-lo. Ora, sabia Cristo que ao seu redor estava um traidor e um que iria negá-lo logo. E também destes lavou os pés. Não foram os pés de Pedro, Senhor meu, aqueles pés covardes que O seguiam de longe? Não são estes pés desleais de Pedro que irão levá-lo ao lugar onde negar-vos-á? Não são os pés de Judas os pés do traidor que levaram a guarda até o Horto? Pois prostrado diante deles estais? Sim! E contento-me em ver-Vos assim. Pois não seríeis Vós quem sois, meu amado Jesus, nem vosso amor seria amor, nem fora vosso, se o pudessem mudar as ingratidões perpetradas pelos homens ou os agravos por eles ditos. Pois, se nestes homens tamanha foi a ingratidão, maior foi o vosso amor.

Quanto a ti, Judas, tivestes um coração endurecido e envenenado por Satanás. Estavas obscurecido pela sombra das trevas, não permitindo, assim, ver quão excelso é o amor do Senhor que estava disposto a perdoar-te. Mas nem este gesto moveu-te as duras entranhas. E por que não excluiu o Senhor a Judas? – Pergunto-me curiosamente eu e vós vos perguntais com devoção. Digo-vos que não o excluiu porque este dia não seria do julgamento, mas do amor, e o amor verdadeiro a ninguém exclui, mas é capaz de manifestar-se ainda quando somos traídos.

“Jesus… levantou-Se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura” (Jo 1, 4 – 5). Santo Agostinho de forma bela narra esta ação de Jesus: “Tirou Seu manto Aquele que, sendo Deus, aniquilou-se a Si mesmo; cingiu-Se com uma toalha Aquele que verteu Seu Sangue para com ele lavar as manchas do pecado” (Sto. Agostinho apud Sto. Tomás de Aquino, Catena aurea). Oh, divindade tão simples e tão incompreensível! Amar-Vos não me seria suficiente, senão amar-Vos e servir-Vos; pois Vós por primeiro nos servistes. Que seja o homem a servir a Deus não nos é surpresa; mas Deus servir ao homem? Pois quanto estupor não causar-nos-ia hoje ver o Filho de Deus inclinado ante a nós para lavar-nos também os pés?! Tão inusitado gesto só poderia deixar uma imensa perplexidade nos Apóstolos. Aquele que hoje nos inclinamos para adorar, se inclinou por primeiro pra servir-nos. Quiçá o exemplo de Cristo possa infundir em nossos corações um profundo amor e humildade.

Enquanto estava a lavar os pés eis que chega a vez de Pedro e este, surpreso, lhe perguntara, como também nós O perguntaríamos: “Domine, tu mihi lavas pede – Senhor, Vós quereis lavar-me os pés?” (Jo 13, 6). E Jesus lhe afirma: “Quod ego facio, tu nescis modo, sciens autem postea. Dicit ei Petrus: Non lavabis mihi pedes in aeternum. Respondit ei Jesus: Si non lavero te, non habebis partem mecum – O que agora faço tu não entendes, mais tarde, porém, o compreenderás. Disse-Lhe Pedro: Nunca me lavarás os pés. Respondeu-lhe Jesus: Se eu não te lavar os pés, comigo não hás de ter parte (vv. 7 – 8). Hoje continua o Senhor a lavar-nos, não mais com água, mas com Seu próprio Sangue vertendo na cruz. Pois se na primeira lavou os pés dos apóstolos, agora lava-nos para que com Ele possamos ter parte, purificando-nos de todos os pecados.

Santo Agostinho, São Beda e outros escritores, hão de afirmar que a lavagem dos pés haveria de ter iniciado por Pedro, a quem Cristo sempre priorizou como chefe dos apóstolos. Outros antigos comentaristas – Orígenes, São João Crisóstomo, Eutímio – afirmam que ela teria iniciado por Judas “para pagar ao traidor o mal com o bem e comovê-lo por meio de um benefício singular, bem como advertir-nos de que devemos agir semelhantemente com nossos inimigos” (Maldonado, Comentário aos quatro Evangelhos, p. 754). Se nos diz o Evangelho que chegou a vez de Pedro, logo haveria de ter ao menos um antes dele.

Depois de terminar tão portentoso exemplo de humildade, voltou o Senhor e assentou-se, perguntando aos que lhe eram tão caros: “Scitis, quid fecerim vobis? – Compreendeis o que vos fiz?” (v. 12). De maneira enfática pergunta o Senhor se sabiam, mostrando que não. Desta forma, disposta a narrativa evangélica, na primeira parte estava a demonstrar a sabedoria de Cristo, na segunda, a mostrar a ignorância dos homens.

Paulo na Carta aos Coríntios dirá o que foi-lhe passado sobre a Ceia do Senhor. “Na noite em que ia ser entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: ‘Isto é o meu corpo entregue por vós. Fazei isto em memória de mim’. Do mesmo modo, depois da ceia, tomou também o cálice e disse: ‘Este cálice é a nova aliança no meu sangue. Todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em minha memória’” (1º Cor 11, 23-25).

A Igreja, com a Sucessão Apostólica, é incumbida pelo Senhor para que perpetue sua presença na terra por meio da Eucaristia.

Hoc facite in meam commemorationem – Fazei isto em minha memória. Filhos – diz-nos Cristo hoje – tudo dei por vós. Dei a minha vida, o meu sangue, dei-me todo por amor de vós e não quero nenhuma outra paga de vós, senão que vos recordei de mim. De tantas coisas que nos fez e disse o Filho de Deus nenhuma, digo-vos, [nenhuma!] é de nos entristecer mais nossos corações do que este pedido. Que o Deus, que por nós se fez homem e se doou inteiramente chegue a pedir que dEle nos recordemos? Oh! Amor! Oh! Quão grande é a bondade divina! Mas oh ingratidão humana! “É Deus tão amoroso e tão benigno que nos pede a nossa memória, e somos tão duros e tão ingratos, que é necessário a Deus que no-la peça” (Padre Antonio Vieira, Sermão do Mandato).

Em memória de Cristo e em Seu nome, a Igreja administra os Sacramentos.

Hoje a humildade vence a arrogância de Satanás. Hoje Aquele que se inclina faz-se pão para nutrir a nossa caminhada. Não deixemos que Jesus seja esquecido! Não deixemos que a nossa sociedade chegue ao êxito de sua descristianização. A voz do Senhor ressoa também em nossos dias, e busca acolhida em nosso coração. Seu exemplo é gritante para os homens de hoje, fartos por uma autossuficiência e arrogância que os aparta mais ainda de Deus.

Rezemos, pois, neste dia, para que o Senhor encontre-nos abertos a Sua Palavra. Que o Cristo, que outrora inclinou-Se para lavar os pés dos apóstolos, receba todo o nosso louvor. E a Ti Maria, Mãe do divino amor, elevamos uma prece, neste dia, para que a humanidade encontre repouso em Jesus Cristo, que em tudo nos é exemplo.